Quando dois titãs do pop mundial desembarcam no Brasil para shows gratuitos em plena praia de Copacabana, a única reação possível é: isso realmente está acontecendo? E aconteceu. Entre maio de 2024 e maio de 2025, Madonna e Lady Gaga ofereceram ao público brasileiro duas experiências que transitaram entre o teatro, a ópera pop e a catarse coletiva. E agora, com o calor da areia já dissipado e os palcos desmontados, uma pergunta paira no ar como um sintetizador retrô: quem entregou o melhor espetáculo?
Como um crítico que vive de nuances, texturas sonoras e o impacto emocional da performance, trago aqui um veredito argumentado. Vamos examinar as duas apresentações como se estivéssemos destrinchando álbuns conceito. E aviso logo: os dois shows foram memoráveis, mas a experiência estética, emocional e técnica de Lady Gaga acabou suplantando — ainda que por pouco — a teatralidade de Madonna.
O ambiente: clima de espetáculo x introspecção gótica
Madonna:
A veterana apostou em um espetáculo de estrutura teatral, com diversos atos bem definidos e uma narrativa que passeava por seus 40 anos de carreira. O show foi pensado como uma peça de teatro pop, com mudanças de figurino, cenários e transições calculadas. Apesar disso, havia momentos mais leves e dançantes, que tentavam resgatar o clima de festa prometido.
Lady Gaga:
Em contraste, Gaga apostou na densidade. Sua performance foi uma espécie de ópera gótica altamente conceitual. As transições tinham uma aura sombria e intensa, com simbolismos dramáticos e uma pegada quase fílmica. O show exigia mais atenção emocional do público, e oferecia menos momentos de respiro. Ainda assim, não soou pretensioso, e sim coerente com a persona que Gaga escolheu encarnar.
➡️ Ponto para Madonna no quesito acessibilidade; Gaga levou na profundidade artística.
O tamanho do público: números impressionante
Madonna:
Segundo dados oficiais da prefeitura, cerca de 1,6 milhão de pessoas compareceram ao seu show. Um número que por si só já impressiona, mesmo para padrões brasileiros.
Lady Gaga:
Gaga conseguiu algo ainda mais insano: 2,1 milhões de espectadores, de acordo com a Riotur. A Praia de Copacabana virou uma maré de fãs vestidos de preto, neon e glitter.
➡️ Ponto claro para Lady Gaga, que quebrou recordes.
Performance vocal e arranjos: voz contra playback
Madonna:
Se o foco era o espetáculo visual, o vocal ficou em segundo plano. O uso de playback foi evidente, e a ausência de uma banda ao vivo deixou a apresentação mais fria. Tudo era milimetricamente orquestrado, mas perdia em espontaneidade.
Lady Gaga:
Apesar de também usar vocais pré-gravados em momentos coreografados, Gaga entregou interpretações ao vivo que expunham até sua respiração ofegante. O uso de banda completa e a exibição dos músicos conferiram autenticidade.
➡️ Ponto para Gaga, sem sombra de dúvida.
Participações especiais: afeto e estratégia
Madonna:
Trouxe Anitta e Pabllo Vittar para participações simbólicas — sem canto, mas com forte valor cultural. Um aceno estratégico ao público brasileiro, especialmente ao segmento LGBTQIA+.
Lady Gaga:
Fez questão de fazer tudo sozinha. Nada de convidados. Isso realçou o tom autoral e introspectivo da performance, mas poderia ter havido um gesto de abertura ao público local.
➡️ Ponto para Madonna, que dialogou melhor com o contexto brasileiro.
O setlist: hits ou conceito?
Madonna:
A Celebration Tour é, literalmente, uma celebração. A seleção de faixas foi um “melhores momentos” de quatro décadas de hits. Clássico atrás de clássico, cada um reimaginado com nova roupagem visual.
Lady Gaga:
Baseou sua apresentação no recém-lançado álbum “Mayhem”, além de faixas de The Fame e Born This Way. Foi uma escolha ousada que ignorou sucessos como “Shallow” e “Rain on Me”. A curadoria foi coesa, mas menos abrangente.
➡️ Madonna leva, por apelar direto à memória afetiva do público.
Homenagens e mensagens: política e emoção
Madonna:
Projeções de vítimas da AIDS, incluindo Cazuza e Renato Russo, deram o tom político e emocional. Um momento catártico que remeteu às raízes ativistas da cantora.
Lady Gaga:
Apesar de menos explícitas, as mensagens estavam presentes. Ela homenageou o Brasil nos figurinos, falou sobre diversidade e fez um discurso emocionante traduzido ao vivo por um fã.
➡️ Empate. Ambas acertaram em registros diferentes: Madonna foi histórica, Gaga foi afetiva.
Visual e estética: da realeza ao underground
Madonna:
Alternou entre o sagrado e o profano, passando por cenários medievais e urbanos. Recriou ícones de sua carreira com estética elaborada e poderosa.
Lady Gaga:
Seguiu firme no gótico elegante. Cabelos platinados, sombras pesadas, figurinos dramáticos e dançarinos em sintonia com o clima sombrio.
➡️ Empate. Visualmente, as duas entregaram 110%.
Uso do português: empatia em forma de tradução
Madonna:
Interagiu pouco em português. Suas falas e vídeos estavam em inglês e sem tradução, o que criou um certo distanciamento.
Lady Gaga:
Leu um discurso e fez questão de traduzi-lo com a ajuda de um fã. Um gesto simples, mas de impacto imenso no Brasil.
➡️ Gaga leva esse ponto com justiça.
Emoção x conceito: conexão com o público
Madonna:
A estrutura rígida e previsível limitou a emoção. Houve momentos tocantes, mas nada pareceu sair do script. Até a interação em “Vogue” foi reciclada de outros shows.
Lady Gaga:
Chorou, improvisou falas, interagiu diretamente com o público. A entrega foi visceral, e isso transpareceu nos rostos da multidão.
➡️ Gaga 1 x 0 no quesito emoção crua.
Técnica e execução: falhas x fluidez
Madonna:
Enfrentou pequenos problemas técnicos, como o som baixo no início. Ainda assim, a experiência foi visualmente deslumbrante.
Lady Gaga:
O show fluiu com precisão. Cenários, iluminação e áudio estavam calibrados. Parecia que tudo conspirava a favor da performance.
➡️ Gaga ganha pelo profissionalismo técnico.
O veredito: Gaga vence por uma unha de gel preta
Tanto Madonna quanto Lady Gaga ofereceram ao Brasil espetáculos de altíssimo nível, cada uma com sua proposta, sua estética e seu legado. Madonna celebrou sua carreira com um musical autobiográfico grandioso. Lady Gaga ofereceu uma performance conceitual, sombria e emocional, que exigia mais do público, mas recompensava com intensidade.
Resultado final: Lady Gaga 7 x 6 Madonna
Foi apertado. Mas Lady Gaga venceu — não só em número de espectadores, mas por entregar um espetáculo coeso, vulnerável e artisticamente ousado. Enquanto Madonna olhou para o passado, Gaga reafirmou seu presente e pavimentou o futuro. Como crítico, é isso que se espera de uma artista que ainda quer surpreender.