Duas produções audiovisuais oriundas do Rio Grande do Sul ganham destaque esta semana ao transpor para as telas narrativas urgentes, humanas e por vezes negligenciadas pelo grande público. “Violadas e Segregadas”, série documental dirigida por Tatiana Sager com roteiro de Renato Dornelles, estreia nesta quinta-feira, 1º de maio, às 23h, com exibição nacional pela TV Brasil e pela Rede Nacional de Consórcios Públicos (RNCP). Paralelamente, os mesmos realizadores têm outro motivo para comemorar: seu curta-metragem “Huni Kuï, povo verdadeiro” foi selecionado para a programação oficial do 27º Festival de Cinema Brasileiro de Paris, que ocorreu entre 29 de abril e 6 de maio.
Essas duas obras compartilham não apenas a assinatura dos cineastas, mas uma linha curatorial que prioriza direitos humanos, justiça social e o resgate da memória coletiva de grupos historicamente marginalizados.
Uma série urgente sobre corpos aprisionados
A estreia de Violadas e Segregadas acontece de forma simbólica no mês em que se celebra, no dia 17 de maio, o Dia Internacional de Luta contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia. Com cinco episódios de 30 minutos, a série foi filmada em unidades prisionais do Rio Grande do Sul e lança luz sobre um tema de rara abordagem no audiovisual brasileiro: a realidade de mulheres trans e travestis encarceradas.
Segundo o roteirista Renato Dornelles, retratar esse universo foi uma tarefa desafiadora. “Essas pessoas enfrentam exclusão desde sempre. Dentro das prisões, vivem uma segregação ainda mais brutal”, afirma. Presas em unidades masculinas e, muitas vezes, isoladas da massa carcerária ou confinadas com autores de crimes sexuais, essas mulheres vivem sob múltiplas camadas de violência institucional.
Além disso, a obra revela outro aspecto marcante: a maioria das detentas retratadas é negra, pobre e oriunda das periferias urbanas. Quando deixam o sistema prisional, enfrentam não só o estigma de terem sido presas, mas também a transfobia, o racismo e a aporofobia — o preconceito contra pessoas em situação de pobreza.
Produção ameaçada, resistência garantida
Selecionada por meio do edital BRDE/FSA-PRODAV – TVs Públicas – 2018, a série fazia parte de uma política pública de incentivo à diversidade audiovisual. Contudo, durante o governo Bolsonaro, o processo foi abruptamente cancelado — um episódio emblemático do desmonte de políticas culturais voltadas à população LGBTQIA+. Felizmente, a decisão foi judicialmente revertida, garantindo a continuidade da produção.
A equipe criativa é formada majoritariamente por profissionais do cinema gaúcho. A direção de fotografia é dividida entre Gabriel Sager Rodrigues, Pedro Rocha e Márcio Cardoso, enquanto a montagem ficou a cargo de Luan Ott. O som é assinado por Wendel Fey, que também cuida da mixagem, e a trilha sonora original é de Everton Rodrigues. A produção é da Falange Produções, com distribuição da Panda Filmes.
Da Amazônia para Paris: o povo Huni Kuï nas telas
Simultaneamente, o curta documental Huni Kuï, povo verdadeiro, representa o cinema gaúcho em solo francês. O filme integra a seleção oficial do 27º Festival de Cinema Brasileiro de Paris, um dos mais importantes da diáspora cultural brasileira na Europa. A mostra reúne 35 obras, entre elas produções consagradas como Vitória, Ainda Estou Aqui e O Auto da Compadecida 2.
Com apenas 20 minutos de duração, o filme tem impacto duradouro. Dirigido por Tatiana Sager e Gabriel Sager Rodrigues, com roteiro de Renato Dornelles e Carlos Hammes, o documentário foi gravado em 2024 em aldeias do povo Huni Kuï, no Acre. O acesso até a comunidade, localizada às margens do Rio Humaitá, exige jornadas de dois a sete dias de barco, o que reforça o caráter de isolamento e resistência dessa etnia.
Sabedoria ancestral e ecologia sagrada
Huni Kuï, povo verdadeiro propõe um mergulho respeitoso na cosmovisão desse povo originário. A câmera observa com delicadeza como os Huni Kuï se relacionam com o ambiente ao seu redor, em uma teia simbiótica que inclui humanos, animais, plantas e espíritos. Seu modo de vida está profundamente conectado com o que hoje chamamos de sustentabilidade, mas que, para eles, é apenas uma forma de viver em equilíbrio.
A medicina tradicional, os cantos sagrados, os rituais de cura e o uso consciente dos recursos naturais aparecem como pilares culturais. Como bem aponta a diretora Tatiana Sager: “É necessário dar visibilidade aos povos originários porque nossos temas giram em torno dos direitos humanos e da dignidade humana”.
A trilha sonora, assinada por Lila Borges, evoca tanto o universo sonoro da floresta quanto o ritmo das cerimônias indígenas. A montagem, feita por Luca Alverdi, Gabriel Sager e Tula Anagnostopoulos, confere fluidez à narrativa, enquanto o som foi cuidadosamente trabalhado por Wendel Fey e Luis Alberto Muniz. A realização é fruto de uma parceria entre Panda Filmes, Falange Produções, Aldeia Mati, Txana Mukaya, Cabiria Produções e Tucano Filmes.
Cinema gaúcho no mundo: resistência e reconhecimento
As duas produções reafirmam a potência do cinema documental do sul do Brasil, que, mesmo com recursos limitados e enfrentando instabilidades políticas e financeiras, continua a se reinventar. O reconhecimento em um festival internacional como o de Paris é também um reconhecimento da importância dessas narrativas para o Brasil contemporâneo.
Vale destacar que outro filme gaúcho foi selecionado para o evento: Anahy de las Missiones, longa de 1997 dirigido por Sérgio Silva, cuja presença na mostra contribui para traçar um arco histórico da produção do Rio Grande do Sul no cinema brasileiro.
Ao dar visibilidade a travestis encarceradas e a povos indígenas isolados, Tatiana Sager, Renato Dornelles e Gabriel Sager não apenas fazem cinema — eles registram memórias, desconstroem silêncios e abrem caminhos para o debate.
Referências
- Bento, B. (2021). Transfeminismo: Teorias e práticas. Editora Zahar.
- Peluso Jr., R. (2018). Direitos Humanos e sistema prisional brasileiro. Revista Brasileira de Políticas Públicas.
- ISA – Instituto Socioambiental. Povos Indígenas no Brasil: Huni Kuï. www.socioambiental.org
Festival de Cinema Brasileiro de Paris. www.festivaldecinema.com