A história de “Astronauta de Mármore” do Nenhum de Nós é um fascinante exemplo de como uma canção pode ser reinterpretada e transformada, conectando diferentes culturas e contextos musicais. A trajetória dessa versão da clássica “Space Oddity” de David Bowie, lançada originalmente em 1972, é uma narrativa repleta de curiosidades e desafios que moldaram a identidade da banda gaúcha e deixaram uma marca indelével na cena musical brasileira.
Para compreendermos completamente o impacto e a importância dessa versão, é essencial começar explorando a origem da canção original. “Space Oddity,” lançada por David Bowie, é um marco na história do rock. O álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, no qual a música foi incluída, foi um reflexo da época de ouro da exploração espacial. O homem havia chegado à Lua no final dos anos 60, e Bowie capturou o espírito dessa era com sua narrativa sobre o Major Tom, um astronauta fictício.
No entanto, nosso foco não é a versão original de Bowie, mas sim como o Nenhum de Nós, uma banda brasileira de rock, transformou essa obra-prima. A história começa com um episódio decisivo que ocorreu durante as gravações do segundo disco da banda, Cardume. A produção desse álbum não foi tranquila. Havia tensões internas e desentendimentos com o produtor Reinaldo Barreira, que havia trabalhado com a banda no disco de estreia, Nós Vamos Invadir Sua Praia.
Em um momento de frustração, Barreira decidiu se afastar temporariamente do estúdio, deixando a banda em um estado de agitação. A solução para aliviar o estresse e talvez encontrar uma nova direção para o álbum foi tocar alguns covers. Com a disponibilidade rara do técnico de som Valtinho, o trio – composto por Thedy Correa, Carlos Stein e Sadi Klein – começou a explorar versões de músicas de seus artistas favoritos, como Talking Heads e David Bowie.
Entre as várias músicas que experimentaram, “Space Oddity” se destacou. Embora a banda nunca tivesse cogitado gravar uma versão de Bowie antes, eles haviam tocado a canção em alguns shows com uma resposta morna do público. No entanto, naquele momento de improvisação, “Space Oddity” começou a ganhar uma nova vida. Barreira, ao retornar ao estúdio, ouviu a versão e imediatamente reconheceu que a canção poderia ser o toque que faltava no álbum.
Apesar de inicialmente resistirem à ideia, a banda foi convencida por Barreira a gravar a versão em português da música. Em vez de simplesmente traduzir a letra original, Barreira sugeriu que eles criassem uma nova letra que se conectasse com o público brasileiro. A banda, conhecida por seu processo colaborativo de composição, mergulhou na tarefa de transformar “Space Oddity” em “Astronauta de Mármore”.
O processo criativo para a nova letra envolveu várias referências. A banda recorreu a influências que incluíam a música do cantor e compositor gaúcho Vitor Ramil, que havia feito uma releitura de uma canção de Bob Dylan, e ao personagem Major Tom, presente em outras músicas de Bowie. Além disso, a inspiração veio de uma leitura que Carlos Stein ou Sadi Klein havia feito sobre Michael Collins, o astronauta da Apollo 11 que permaneceu em órbita lunar enquanto seus colegas de missão pousavam na Lua.
A letra de “Astronauta de Mármore” foi cuidadosamente elaborada para refletir a jornada e as emoções do Major Tom, assim como o sentimento de solidão e transformação. A banda fez uso de referências a outras canções de Bowie e elementos da exploração espacial, misturando ficção e realidade para criar uma narrativa única.
No entanto, o processo não foi sem desafios. Barreira, inicialmente, não estava satisfeito com o refrão da versão portuguesa. A banda, preocupada em manter a integridade da sua criação, enfrentou mais uma rodada de ajustes e negociações. Finalmente, após uma série de modificações, a versão final foi concluída com a adição de um violino, que deu um toque especial à canção.
A próxima etapa foi a autorização para o uso da versão em português da canção. A banda enviou uma cópia da letra traduzida para Londres, aguardando a aprovação dos representantes de David Bowie. Esse processo burocrático causou um atraso no lançamento do álbum Cardume, mas a espera valeu a pena. O próprio Bowie, em uma visita ao Brasil em 1990, fez uma referência à versão do Nenhum de Nós em seu show em São Paulo, reconhecendo a relevância e o impacto da adaptação.
Quando o disco Cardume foi finalmente lançado, “Astronauta de Mármore” rapidamente se tornou um sucesso no Brasil. A canção superou até mesmo “Like a Prayer” de Madonna em popularidade, consolidando-se como a música mais tocada no país em 1989. Curiosamente, a gravadora BMG, responsável pelo lançamento do álbum, inicialmente não incluiu “Astronauta de Mármore” em sua lista de singles promissores. A aposta da gravadora estava em “Eu Caminhava,” que acabou não atingindo o sucesso esperado.
Foi o locutor de rádio Eduardo Andrews, da Rádio Cidade, que mudou o rumo da história. Convicto de que “Eu Caminhava” não tinha o peso necessário, Andrews decidiu promover “Astronauta de Mármore” como o single principal. Sua decisão se mostrou acertada, e a música rapidamente conquistou o público, gerando uma onda de popularidade e novos contratos para a banda.
No entanto, a recepção da versão de “Astronauta de Mármore” não foi unânime. A crítica foi dividida, com algumas resenhas apontando a transformação da canção de Bowie em uma balada brega como um equívoco. A crítica mais contundente veio de Umberto Gessinger, que expressou descontentamento com a versão e questionou a autenticidade das bandas de rock que optavam por regravar clássicos.
A crítica mais dolorosa para a banda, porém, veio de Renato Russo, da Legião Urbana. Russo expressou sua frustração com a ideia de que o rock brasileiro estava se tornando um espaço para versões de músicas internacionais, ao invés de criar material original. Após a declaração, Russo pediu desculpas por telefone ao Thedy Correa, e a tensão entre as bandas foi amenizada.
A história de “Astronauta de Mármore” também teve um capítulo controverso com o cantor Seu Jorge. Em 2004, Seu Jorge incluiu uma versão da canção na trilha sonora do filme A Vida Marinha com Steve Zissou. No entanto, os créditos dos autores originais, Nenhum de Nós, não foram incluídos. Isso levou a uma disputa legal, onde a banda tentou reivindicar seus direitos autorais. A decisão judicial, no entanto, favorceu a gravadora antiga, e a banda não recebeu compensação pelos direitos autorais da versão de Seu Jorge.
Assim, “Astronauta de Mármore” continua sendo uma peça central na discografia do Nenhum de Nós, um testemunho da habilidade da banda em transformar uma canção icônica em algo genuinamente brasileiro. A versão, que começou como uma improvisação em um momento de crise, tornou-se um clássico que representa a interseção entre o rock internacional e a criatividade brasileira.
Com essa história rica e complexa, “Astronauta de Mármore” não é apenas uma canção; é um exemplo de como a música pode transcender fronteiras e criar novas narrativas. A trajetória dessa versão oferece uma visão fascinante de como o rock pode evoluir e adaptar-se, preservando a essência das origens enquanto abraça novas interpretações e contextos culturais.