Nas páginas coloridas das histórias em quadrinhos, onde heróis voam, vilões tramam e crianças riem, uma figura muitas vezes discreta, mas profundamente significativa, atravessa décadas de narrativas: o mordomo. Esse personagem, quase sempre à margem do protagonismo direto, carrega consigo uma tradição literária que se reconfigura e se renova nas HQs. Seja como braço direito de milionários mascarados ou como cúmplice de vampiras sedutoras, o mordomo nos quadrinhos é um espelho da lealdade, da sagacidade e, por vezes, da suspeição.
Uma das mais encantadoras histórias que ilustram esse papel foi publicada na edição “Coleção Um Tema Só 11 – Cebolinha e o Louco” (Editora Globo, 1995). Nela, o milionário Santimuch Money, à beira da morte, convoca seu fiel mordomo Gervásio para cumprir um último desejo: encontrar a pessoa mais honesta do mundo e entregar-lhe toda a sua fortuna. A partir desse momento, o leitor embarca numa jornada global de perigos e aventuras, onde Gervásio, fiel até o fim, supera armadilhas, ladrões e desilusões até encontrar, na floresta amazônica, o despretensioso Papa-Capim — aquele que representa a virtude buscada. Essa narrativa simples, porém simbólica, destaca os principais valores que definem o arquétipo do mordomo: fidelidade, resiliência e discrição.
Entre a nobreza e o crime: o mordomo como suspeito ideal
Apesar dessa aura de retidão, o mordomo nunca escapa da sombra da suspeita. Desde as tramas de Agatha Christie até as paródias modernas, a máxima “o mordomo é o culpado” tornou-se um clichê da cultura pop. E os quadrinhos, como legítimos herdeiros dessas convenções narrativas, souberam explorar esse estereótipo com astúcia.
Exemplos não faltam. O Inspetor Vivaldo, personagem da extinta revista A Pantera Cor-de-Rosa, vivia investigando casos em que, invariavelmente, o mordomo era o principal suspeito. Às vezes inocente, outras nem tanto, esse personagem encarna o papel perfeito: alguém sempre por perto, discreto e com acesso a tudo. Na mesma linha cômica, temos a Agência de Detetives Moleza, de Zé Carioca e Nestor, cuja filosofia era clara: “Todo mordomo é culpado”. Ainda que nem sempre tivessem razão, a repetição desse pensamento criava um humor sarcástico e autorreferente.
O herói por trás do herói
No universo dos super-heróis, o mordomo frequentemente assume um papel ainda mais nobre: o de guardião silencioso. O maior exemplo? Sem dúvida, Alfred Pennyworth, o fiel servo — ou melhor, pai — de Bruce Wayne, o Batman. Mais do que um empregado, Alfred é conselheiro, estrategista e, por vezes, substituto do próprio Morcego. Durante a saga “Bruce Wayne: Fugitivo”, Alfred chega a vestir o traje do herói para confundir os vilões. Sua ausência foi sentida com pesar em “A Queda do Morcego”, e seu retorno, celebrado como o de um personagem principal.
Outro nome de peso é Jarvis, o mordomo dos Vingadores. De coadjuvante da mansão Stark a figura central da base da equipe mais poderosa da Marvel, Jarvis representa confiança. Ele conhece segredos, identidades e fraquezas. Mais que servir chá, serve à missão de proteger o bem maior. Um detalhe curioso: sua afilhada chegou a integrar a equipe reserva, o que mostra que até sua vida pessoal é entrelaçada com os super-heróis.
Mordomos sobrenaturais e assombrosamente leais
As histórias de terror nas HQs também reservam espaço generoso para os mordomos. Aqui, sua presença ganha contornos mais sombrios. Em Zagor 22 (Mythos Editora, 2003), o misterioso Samish Pasha é o braço direito do coronel Korasi na luta contra vampiros e lobisomens. A princípio suspeitou, logo conquista a confiança do leitor ao mostrar coragem e sabedoria na guerra contra o sobrenatural.
Na mesma veia gótica, temos Brooks, mordomo da vampira Mirza, personagem clássica de Eugenio Colonnese. Diferente de outros colegas de profissão, Brooks participa ativamente das tramas sangrentas de sua patroa. É cúmplice, executor e bajulador, compondo uma figura quase teatral. Já Finório, de Mickey-X 1 (Editora Abril, 2003), é uma caricatura impagável do mordomo britânico: fleumático, impassível, indiferente até ao ser perseguido por monstros do além. Uma sátira deliciosa ao arquétipo clássico.
O alívio cômico: mordomos com personalidade explosiva
Mas nem só de nobreza e mistério vivem os mordomos. Em algumas HQs, eles são o alívio cômico da narrativa. O mais notório talvez seja Groucho, o assistente de Dylan Dog, cuja figura é inspirada no comediante Groucho Marx. Entre piadas infames e momentos inoportunos, ele é o melhor amigo do detetive do sobrenatural. A loucura de Groucho contrasta com o horror das histórias e traz uma camada de humanidade à série.
Outro mordomo inesquecível é Alberto, empregado de Rocha Vaz, o sogro rabugento de Zé Carioca. Completamente hostil ao papagaio malandro, Alberto é espelho da antipatia do patrão, tornando-se um antagonista divertido. O mesmo ocorre com Anastácio, fiel escudeiro do riquinho Plínio, da turma do Bolinha. Prepotente e elitista, Anastácio reprova a convivência do patrãozinho com a plebe e paga caro por isso nas mãos da turma da rua.
Nas HQs infantis, a alma do mordomo brilha mais forte
Nos quadrinhos voltados ao público infantil, o mordomo ganha contornos quase heróicos. Duarte, o mordomo de Riquinho, é praticamente um super-herói: possui força sobre-humana e um espírito de aventura que o coloca lado a lado com o menino milionário em diversas peripécias. Sua lealdade é inquestionável e sua disposição, contagiante.
Já no universo do Tio Patinhas, o discreto Batista se destaca por sua honestidade e dedicação. Mesmo mal pago, é leal ao extremo. Quando o velho muquirana perde tudo, Baptista permanece ao seu lado, mostrando que a fidelidade não depende de cifras. Sua batalha contra Maga Patalójika é travada com coragem silenciosa — e muitas vezes hilária.
Entre exceções e estereótipos: o mordomo como espelho social
É claro que nem todos os mordomos das HQs são santos. Histórias como as publicadas na Disney Especial 11 – Os Fantasmas mostram empregados traidores, que tramam contra seus patrões. Essas exceções, porém, apenas ressaltam a força do arquétipo dominante: o mordomo como o mais confiável dos personagens secundários.
Essa figura é, afinal, uma extensão do próprio leitor — sempre observando, ouvindo e refletindo. Ao representar uma mistura de discrição, humor, lealdade e mistério, os mordomos das HQs nos lembram que, às vezes, os maiores heróis não vestem capas, mas sim aventais impecavelmente passados.