Numa manhã de inverno de 1991, Cássia Eller acordou em meio a uma gritaria dentro de casa. Policiais queriam levar todo mundo para a delegacia. “Todo mundo” significava ela, seu empresário e tio, sua secretária, amigos e mais pessoas que compartilhavam a casa, que era uma espécie de república hippie. A plantação de maconha da casa havia sido descoberta. A residência, que funcionava como uma república, estava localizada no Rio de Janeiro, onde Cássia havia se estabelecido após lançar seu primeiro disco.
Enquanto a casa era vasculhada, Cássia desceu as escadas, foi até a geladeira, retirou uma cerveja na frente dos policiais e disse: “Eu vou ali no estúdio tocar um pouco.” Ela estava mentindo; na verdade, foi fumar um baseado. Como o estúdio era vedado, os policiais não sentiram o cheiro. Cássia queria ficar mais calma, mas não adiantou muito, pois minutos depois estaria batendo boca com os policiais e correndo sério risco de ser presa. Tudo foi resolvido graças a um contato no governo, e esse foi talvez o episódio mais engraçado — engraçado para quem não estava lá — da fase mais esporrenta de Cássia e sua equipe. Foram cerca de três anos de muito dinheiro desperdiçado e uma boa dose de consumo de drogas, numa experiência digna do auge dos anos 70.
O episódio mencionado é apenas uma das muitas histórias de um período em que a carreira de Cássia quase foi para o buraco. Em 1990, Cássia Eller lançou seu primeiro disco pela gravadora PolyGram, um contrato que surgiu graças ao seu tio Wanderson Eller, na época chamado de Vanderson Cleiton. Os dois tinham se reencontrado em São Paulo e se deram muito bem. Ele levou uma fita demo ao então diretor artístico da gravadora, Mairton Bahia, que produziu vários discos da Legião Urbana e acreditou no potencial de Cássia.
Essa foi a salvação, inclusive porque, em São Paulo, para onde ela foi depois de sair de Brasília, ela estava na pior: sem dinheiro e fazendo quase nenhum show com sua namorada Eugênia. Mas, entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Cássia colocou no repertório canções de seus ídolos da Vanguarda Paulista, como Arrigo Barnabé e Mário Manga. Até uma versão reggae de “Eleanor Rigby”, dos Beatles, entrou no disco, junto com músicas de Frejat e Cazuza. O grande destaque foi uma versão de “Por Enquanto”, de Renato Russo, que foi a música que mais tocou nas rádios.
Depois de lançar esse disco, seu tio sugeriu que ela se mudasse para o Rio de Janeiro, achando que lá ela teria mais oportunidades. De início, Cássia morou num apartamento na Barra da Tijuca, onde reuniram a banda e começaram os primeiros shows. A primeira grande confusão foi o desperdício de 35 mil dólares em clipes que nunca ficaram prontos. A história era assim: o contrato de Cássia com a PolyGram previa três discos e uma grana de adiantamento para cada um deles. Ela e Vanderson teriam que usar esse dinheiro como bem entendessem e precisariam vender acima desses adiantamentos para conseguir lucro. Até lá, tudo ficaria com a gravadora.
Para bombar a divulgação de Cássia, Vanderson teve a ideia de produzir cinco clipes e pediu mais uma grana: 35 mil dólares. A PolyGram curtiu a ideia, e eles contrataram o cineasta Luiz Carlos Lacerda. Ele preparou um set com equipamentos e equipe de ponta. Até o Eduardo Moscovis, ator global na época, participou. Mas o dinheiro acabou antes do término das gravações. O cineasta desconfiou de algo estranho e encerrou o projeto. Os filmes não ficaram prontos, e eles tiveram que lidar com um rombo financeiro. Os negativos sumiram, piorando ainda mais o desastre.
Cássia odiou a ideia dos clipes desde o início. No fim das contas, ela saiu sem descobrir quem tinha enganado quem e ainda teve que passar vergonha com a gravadora, que arcou com a maior parte do prejuízo. Isso é o que está escrito na biografia “Apenas uma Garotinha”. Vanderson, que não quis ser entrevistado para a biografia e dá pouquíssimas entrevistas, comentou a história desses clipes numa entrevista ao portal Terra em 2008. Ele disse que o resultado final não foi aprovado. Acabaram fazendo filmagens mais baratas, e várias músicas do disco ganharam clipes que passaram na MTV e até no Fantástico.
Então, vamos àquela república hippie. Vanderson teve a ideia de fundar uma produtora e alugar um sobrado no Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste do Rio de Janeiro. A ideia era que Cássia morasse lá, tocasse, pensasse em arranjos e repertório, juntasse seus músicos e preparasse suas turnês. Acabaram também fazendo muita festa. Assim nasceu a Eller Produções. Fátima Tassinari, fotógrafa que trabalhava na Caixa Econômica Federal e já vinha ajudando, tornou-se a administradora e seria uma personagem importante dali para frente. Ela também morava na casa.
A casa tinha três suítes, piscina, horta, jardim. A garagem virou estúdio. Cássia ganhou violões, baixo, bateria, tudo novo. Segundo Fátima, o investimento inicial foi de 20 mil dólares. Todo mundo da equipe que não era do Rio de Janeiro podia morar ali. Isso incluía Fátima, Cássia, Vanderson e, quando a casa se mudou para o Rio, Eugênia. Ela até assumiu a vaga de Cássia no Tribunal Superior do Trabalho em Brasília, pediu exoneração e se mudou para o Recreio. Os músicos da banda estavam sempre por lá, como o guitarrista Nelson Faria e o baixista Tavinho Fialho, que se tornaria pai do filho de Cássia.
Mas vale lembrar que, embora tivessem lançado um disco, estavam apostando que Cássia estouraria e o dinheiro que ela gerasse sustentaria toda a estrutura. Contudo, boa parte da grana era consumida com drogas. Vanderson gostava de agradar os músicos e não faltava cerveja, dia ou noite. Ele também fazia questão de compartilhar drogas, principalmente cocaína, com todos os moradores e frequentadores da casa, muitas vezes com dinheiro da produtora.
O clima era de liberdade total, e o consumo de drogas era uma constante. Mas não foi ali que Cássia começou a usar drogas; ela e Eugênia já consumiam no fim dos anos 80. Contudo, o consumo aumentou significativamente entre 1991 e 1993. Os vizinhos começaram a se incomodar com o barulho e o cheiro de maconha, e a polícia foi chamada, resultando na cena mencionada no início.
No entanto, esse período não foi só de festas e caos. Cássia realizou 68 shows em 13 estados, com um público total de 120 mil espectadores, embora apenas 45 mil tenham pagado ingresso, indicando uma possível falha que impediu a entrada de muito dinheiro. O primeiro disco vendeu 60 mil cópias e foi elogiado pela crítica, mas Cássia ainda era vista como uma artista alternativa, não facilmente digerível pela grande massa.
No início de 1992, Cássia separou o repertório para seu segundo disco, “Marginal”, que incluía várias canções da Vanguarda Paulista. Surgiram desentendimentos entre Cássia e seu tio, e o disco foi um fracasso comercial, vendendo apenas 40 mil cópias. O sertanejo dominava as paradas, e a PolyGram apostou em Cássia em vez desse gênero, resultando em cabeças rolando na gravadora.
A cantora, percebendo a precariedade de suas finanças e a tensão com Vanderson, decidiu romper com ele em 1993. Procurou ajuda de Mairton Bahia, que sugeriu Rafael Borges, empresário da Legião Urbana, para gerir sua carreira. Embora a parceria com Rafael também não tenha dado certo, Cássia continuou sua trajetória. Em 1993, deu à luz Chicão, o que mudou seu comportamento e diminuiu seu consumo de drogas. Em 1994, “Malandragem” estourou, finalmente trazendo Cássia Eller ao reconhecimento nacional.
Essa história é apenas uma parte da trajetória tumultuada e fascinante de Cássia Eller, uma artista que, apesar de todos os percalços, deixou um legado significativo na música brasileira.