Quando falamos sobre a trajetória política de Donald Trump, há uma palavra que frequentemente surge: ironia. O ex-presidente dos Estados Unidos, conhecido por seu estilo irreverente e suas escolhas que muitas vezes desafiam convenções, tem sido uma figura polarizadora desde o início de sua carreira. Contudo, entre as muitas surpresas de seu governo e campanha, uma ligação musical inesperada tem gerado perplexidade e, ao mesmo tempo, curiosidade. Estamos falando da associação entre Donald Trump e o famoso grupo de disco Village People, mais especificamente com a canção “YMCA”, um hino da era disco que se tornou, nas últimas décadas, um ícone da cultura gay. Como é possível que a música, com suas origens explícitas na celebração da liberdade e da comunidade LGBTQ+, tenha se tornado um símbolo de campanha para Trump? A resposta a essa pergunta nos leva a um mergulho na interseção entre música, política e nostalgia, em um fenômeno que revela muito mais sobre a imagem que Trump construiu de si mesmo e sobre seu apoio popular.
A “YMCA” e o Fenômeno Cultural
Lançada em 1978, “YMCA” rapidamente se tornou um dos maiores sucessos do disco. Com sua batida energética e o icônico refrão, a música exala uma sensação de comunidade e celebração. Mas, ao contrário do que muitos poderiam esperar de uma música sobre um centro comunitário para jovens, “YMCA” tem uma leitura mais profunda. Escrita por Jacques Morali e Victor Willis, a canção foi originalmente uma ode à vida social e sexual de jovens trabalhadores que se encontravam nos abrigos da Young Men’s Christian Association (YMCA), um espaço que na época era mais associado a um refúgio para solteiros, sem mencionar a sua forte ligação com o público gay.
A estética visual do grupo, com membros trajando fantasias de policiais, militares e outros arquétipos da masculinidade americana, se tornou um símbolo duradouro e irreverente. A mensagem de liberdade, diversão e a busca por companheiros foi, por muitos anos, vista como um hino da liberdade sexual e da luta por direitos civis. Essa conotação, claro, fez com que o grupo se tornasse, sobretudo nos anos seguintes ao lançamento de “YMCA”, um ícone associado à cultura gay.
Contudo, a música não apenas permaneceu com essa imagem, ela também se transformou com o tempo. Em um momento curioso da história, vemos essa música de discoteca virando parte da trilha sonora do movimento populista de Trump, uma associação que tem se intensificado desde os comícios de sua campanha.
O Salto Inusitado para a Política
Em uma reviravolta peculiar, “YMCA” começou a ressoar nos eventos políticos de Trump, especialmente em seus comícios. A música, que normalmente seria associada a celebrações em clubes gays ou a filmes de comédia, passou a ser cantada por grandes multidões de apoiadores de Trump. Em 2020, por exemplo, ela foi tocada em protestos contra o lockdown durante a pandemia de Covid-19, sendo rapidamente associada à campanha de Trump, com os manifestantes até modificando o famoso “YMCA” para “MAGA”, sigla do slogan “Make America Great Again”.
Essa escolha musical se encaixa perfeitamente com a abordagem que Trump tem de criar uma atmosfera de espetáculo em suas aparições públicas, mesclando política com entretenimento e cultura pop. O próprio Trump, conhecido por seu gosto pela dramaticidade, frequentemente dançava ao som de “YMCA”, aproveitando o fato de que a música era fácil de cantar junto e de se identificar. No contexto de Trump, o que era uma música de celebração e união no universo LGBT se transformava em um hino para um movimento populista de direita, e isso sem que houvesse uma reação direta dos organizadores do evento ou dos próprios músicos.
A Contradição Dentro da Nostalgia
Uma das razões pelas quais essa associação entre Trump e “YMCA” chama tanto a atenção é a profunda contradição que ela revela. O próprio Trump, um homem que se posicionou repetidamente contra a luta pelos direitos LGBTQ+, agora se encontra no centro de uma conexão inusitada com uma música cuja origem está ligada à celebração da vida gay. Para muitos, isso pode ser entendido como uma ironia flagrante. No entanto, a explicação para essa incongruência pode ser encontrada na própria natureza de Trump e de seu movimento político: a nostalgia.
Segundo o Dr. Jamie Saris, Professor Associado de Antropologia na Universidade Maynooth, “Trump e sua base política estão profundamente ligados à nostalgia por uma época que eles idealizam, como a década de 1970, quando a América parecia mais ‘grande’ e sem as ‘confusões’ atuais”. O movimento MAGA, para muitos, busca recriar uma América do passado, onde certas imagens de masculinidade e virilidade eram admiradas e celebradas. E é nesse contexto que o Village People, com suas fantasias exageradas e figuras que remetem a um “ideal de masculinidade” muito específico, acaba encontrando um curioso ponto de contato com os manifestantes de Trump.
Trump, portanto, não parece estar trollando a cultura liberal ao adotar a música como trilha sonora de seus eventos, mas sim usando-a como uma ferramenta para reforçar a ideia de um “passado glorioso” que ele promete restaurar. De fato, muitos dos seus apoiadores se identificam com a ideia de um retorno ao “passado” dos Estados Unidos, onde a simplicidade, a força de trabalho e a virilidade eram celebradas. Assim, as imagens e o som do Village People, embora paradoxal à primeira vista, funcionam como uma metáfora perfeita para essa América reimaginada.
As Seleções Musicais de Trump e Suas Implicações
Outro ponto interessante sobre a relação entre Trump e suas escolhas musicais é que, ao contrário de muitos outros políticos, Trump não parece se preocupar com a recepção das suas escolhas. Para ele, o que importa é a audiência imediata e a capacidade de gerar empatia com seus apoiadores. Se isso significa dançar ao som de “YMCA” ou fazer uso de músicas que possam ser vistas como incoerentes com a sua mensagem política, ele não hesita. Ao longo de sua carreira política, Trump foi criticado por usar músicas de artistas que se opuseram ao seu uso, como Beyoncé, Rihanna e REM. Curiosamente, isso não o impediu de continuar a utilizar essas faixas, reafirmando sua abordagem descomplicada e quase irreverente em relação ao status quo da política.
De maneira semelhante, a utilização de “YMCA” em seus comícios parece seguir essa lógica de “caos controlado”. Trump sabe que, enquanto os críticos podem ver essa escolha como um símbolo de desrespeito ou confusão ideológica, ela também serve para reforçar a imagem de um homem que não se encaixa nos moldes tradicionais, que foge da rigidez política de outros líderes. A música torna-se, portanto, uma forma de expressar sua própria “liberdade” dentro do cenário político.
A Retirada de Victor Willis e a Reviravolta
Curiosamente, essa ligação musical entre Trump e Village People teve uma reviravolta. Em 2023, Victor Willis, o cantor principal do grupo, enviou uma carta de cessar e desistir quando um grupo de pessoas vestindo fantasias do Village People foi visto se apresentando em Mar-a-Lago, a residência de Trump. Willis, que tem sido vocal em sua oposição à utilização de suas músicas para fins políticos, afirmou que sua decisão de permitir o uso de “YMCA” por Trump foi inicialmente motivada por questões financeiras. Contudo, com o tempo, ele se distanciou dessa associação, declarando publicamente que não queria ver suas músicas usadas para promover uma agenda política com a qual não concordava.
Esta reviravolta é emblemática das complexas dinâmicas que envolvem o uso da música na política, especialmente quando artistas e compositores se encontram em desacordo com a forma como suas obras são apropriadas por figuras públicas. A reação de Willis também revela uma crítica implícita à ironia do uso da canção para fins que, em muitos aspectos, se opõem à sua mensagem original de inclusão e celebração da diversidade.
Conclusão: A Música e a Política de Trump
O uso de “YMCA” por Donald Trump, um ícone da cultura disco e um símbolo de diversão e liberdade, em seu movimento político, é mais do que uma mera curiosidade. Ele encapsula a mistura complexa de nostalgia, ironia e performatividade que caracteriza a presidência de Trump. Ao adotar uma música associada à cultura gay e à liberdade sexual, Trump consegue criar um espetáculo que atrai seu público, ao mesmo tempo em que preserva uma imagem de rebeldia contra o establishment político tradicional. Como a própria música sugere, “não há necessidade de se sentir para baixo… pegue-se do chão”. Para Trump, essa é uma mensagem de resiliência e de conexão com seus seguidores, que, através da música, podem encontrar um senso de pertencimento e identidade, mesmo em meio às contradições que permeiam sua figura pública.