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Carl Barks: O Gênio por Trás do Universo do Pato Donald

Carl Barks não foi apenas mais um artista de quadrinhos da Disney. Ele foi o contador de histórias que transformou o Pato Donald em algo muito maior do que um personagem irritadiço de curtas-metragens animados. Ele é o arquiteto de um universo inteiro — com geografia, regras sociais, conflitos internos e externos, e personagens incrivelmente humanos (ainda que sejam patos, gansos ou galinhas). Se Floyd Gottfredson lapidou Mickey Mouse para os quadrinhos do jornal, foi Barks quem deu profundidade emocional e intelectual a Donald e companhia, criando o que hoje consideramos o padrão ouro das histórias Disney.

Barks não apenas desenhava bem — ele escrevia como poucos. Suas histórias misturavam aventuras épicas, comédia sofisticada, crítica social e humanidade genuína. Em um gênero muitas vezes menosprezado como “quadrinhos infantis”, Barks entregava narrativas que encantavam adultos. Em um tempo antes de sabermos quem estava por trás dos quadrinhos da Disney, ele era o misterioso “Homem dos Bons Quadrinhos do Pato” — e mesmo anônimo, já era uma lenda.

A origem do artista solitário

Carl Barks nasceu em 1901 em Merrill, Oregon. Cresceu no campo, longe da civilização, e desde pequeno enfrentou o isolamento e a surdez progressiva, que o afastava ainda mais do convívio social. Sua salvação? Os livros, o desenho e a imaginação.

Sem ensino médio e com pouca formação formal em arte, Barks foi autodidata. Trabalhou como fazendeiro, lenhador, condutor de mulas e até impressor, acumulando uma gama de experiências que depois ecoaram em suas histórias — especialmente no perfil determinado e trabalhador do Tio Patinhas.

De ilustrador erótico a gênio da Disney

Nos anos 1920 e 1930, seus desenhos começaram a aparecer em publicações como Judge e The Calgary Eye-Opener, onde inclusive publicou cartuns mais ousados. Em 1935, conseguiu emprego na Walt Disney Studios, inicialmente como roteirista e depois como animador, colaborando com vários curtas do Pato Donald.

Foi lá que Barks ajudou a criar personagens que se tornaram pilares do seu futuro universo nos quadrinhos — entre eles, Huguinho, Zezinho e Luizinho, os icônicos sobrinhos de Donald.Barks também fez pinturas semi eróticas, que retratavam homens e mulheres com bico de pato em situações excitantes, mas nunca explícitas.

Em entrevistas, ele explicou que, depois de todos esses anos, ainda não conseguia resistir a transformar cada personagem em um pato antropomórfico. Suas pinturas eróticas, é claro, não foram distribuídas pela Disney. Mesmo assim, ganharam notoriedade suficiente entre os fãs de quadrinhos para atrair o interesse do público. Em 2011, por exemplo, foram exibidas no Museu do Sexo em Manhattan, Nova York, como parte da Exposição “Comics Stripped”, que também apresentou arte erótica particular de outros quadrinistas famosos.

A criação do universo de Patópolis

Em 1942, Barks estreou oficialmente como artista de quadrinhos com a história Donald Duck Finds Pirate Gold. A partir de então, sua carreira tomou um rumo épico. Ele passou a escrever e desenhar histórias mensais para Walt Disney ‘s Comics and Stories, criando toda uma mitologia ao redor de Donald e seus coadjuvantes.

Ele transformou Donald em um personagem tridimensional — nervoso, sim, mas também compassivo, inseguro, criativo e, por vezes, heroico. Seus sobrinhos deixaram de ser apenas “crianças travessas” para se tornarem garotos inteligentes e éticos.

Foi também Barks quem criou Patópolis (Duckburg), a cidade fictícia onde todas as histórias se desenrolam, e que inclui personagens como o inventor Prof. Pardal (Gyro Gearloose), a bruxa Maga Patalójika (Magica De Spell), os Irmãos Metralha (Beagle Boys), o Vizinho Silva (Jones), e, claro, o inesquecível Tio Patinhas (Scrooge McDuck).

Tio Patinhas: muito mais que um avarento

Tio Patinhas é, talvez, a maior criação de Carl Barks. Inspirado tanto em Ebenezer Scrooge quanto em milionários da era da Corrida do Ouro, Patinhas é complexo: um velho sovina, sim, mas também aventureiro, engenhoso, e com um passado rico em façanhas. Ele não é apenas o pato mais rico do mundo; é um personagem que simboliza o espírito da autodeterminação americana — com críticas embutidas, é claro.

A Caixa-Forte de Patinhas, o “Centavo Número Um” e suas caças ao tesouro em terras exóticas são apenas parte do fascínio. Barks construiu nele um protagonista capaz de representar ganância, nostalgia, orgulho, sabedoria e insegurança. Um personagem de verdade.

Histórias com alma

O diferencial de Barks sempre foi o equilíbrio perfeito entre arte e narrativa. Suas aventuras em locais como a Atlântida, o Himalaia ou o Velho Oeste são sempre ricas em pesquisa, humor sutil e crítica social — mas sem jamais abandonar o espírito de entretenimento.

Ele transformou histórias simples em jornadas que nos fazem refletir sobre ética, economia, família e sociedade. As crianças se divertiam com as travessuras; os adultos viam um espelho de suas próprias lutas cotidianas.

Humanidade

Ao exibir tais buscas, Barks nunca perdeu de vista seus personagens. Ele nunca os viu como “animais engraçados”, mas sim como humanos que por acaso se pareciam com patos. 

O artista se identificava com Donald, já que ele também havia experimentado pobreza, azar e solidão na vida. 

Mas, assim como Donald e Tio Patinhas, ele nunca desistiu, uma virtude que também expressou em sua obra. 

Vários quadrinhos oferecem aos leitores lições de vida sobre amizade, família, perseverança, os aspectos gratificantes do trabalho honesto e a superficialidade do dinheiro. 

Barks foi capaz de adicionar humanidade às suas histórias sem nunca parecer meloso ou excessivamente idealista. 

Algumas histórias têm um lado bastante cínico, o que é incomum nas produções da Disney. Os protagonistas nem sempre conseguem o que querem no final. Mesmo as caracterizações unidimensionais de “bem contra o mal”, tão comuns nos quadrinhos infantis, são muito mais sombrias nos quadrinhos de Barks. 

O Tio Patinhas pode ser bastante egoísta e ingrato com Donald e os sobrinhos, mesmo que eles frequentemente o ajudem a ficar ainda mais rico. E os Beagle Boys podem ser bandidos, mas são uns perdedores lamentáveis ​​ao mesmo tempo.

Em uma entrevista de 1973 com Donald Ault, Barks explicou sua filosofia: “O mais importante sobre meus quadrinhos é o seguinte: eu contava as coisas como elas são. 

Eu dizia às crianças que os vilões têm um pouco de bondade, e os mocinhos têm muita maldade, e que não se podia depender muito de nada, que nada sempre daria certo. (…) Eu deixava bem claro que não havia diferença entre meus personagens de quadrinhos e a vida que essas crianças — os leitores — teriam que enfrentar.”

Sátira
Algumas das aventuras de Donald são metáforas satíricas inteligentes. Em “Tralala” (1954), Barks satiriza tanto o capitalismo quanto o colonialismo. Tio Patinhas viaja para um país sem sistema monetário, onde as pessoas vivem em paz. 

No entanto, quando ele joga suas tampinhas de garrafa por aí, os habitantes começam a tratá-las como itens valiosos. 

O pato ganancioso percebe as possibilidades financeiras e traz o máximo de tampinhas de garrafa que pode, até que o paraíso seja arruinado para sempre. “Uma Fábula Financeira” (1950), por outro lado, defende o capitalismo contra os perigos do dinheiro fácil. 

Quando toda a fortuna de Tio Patinhas é levada embora por um ciclone e espalhada por toda parte, todos em Patópolis se tornam subitamente milionários. Como todos param de trabalhar, Tio Patinhas administra discretamente uma fazenda com Huguinho, Luizinho e Zezinho como seus ajudantes. 

No final, Tio Patinhas detém o monopólio de todos os acessórios possíveis de que os moradores de Patópolis precisam e rapidamente recupera sua riqueza.

Barks passou a maior parte de sua aposentadoria criando pinturas a óleo. Em 1971, ele recebeu permissão da Walt Disney Company para representar Donald e outros personagens da Disney nessas obras. Entre 1976 e 1981, essa permissão foi temporariamente revogada, mas eventualmente ele foi autorizado a continuar como quisesse. Ironicamente, todas essas questões legais giravam em torno de personagens que ele mesmo criou. Os fãs de Barks adoravam suas pinturas. Algumas eram cenas gerais representando Donald, Tio Patinhas, os sobrinhos e outros. Mas as mais populares faziam referência a cenas clássicas de suas histórias de aventura. Barks pintou tudo com um olhar aguçado para os detalhes e a atmosfera, comparável a uma obra-prima barroca do século XVII. As obras eram uma boa compensação pelo fato de que poucas das páginas originais dos quadrinhos de Barks sobreviveram. Suas pinturas a óleo foram vendidas por preços altíssimos.

Fãs de Barks na Europa

Na velhice, Barks se tornou uma celebridade global entre os fãs da Disney. Ele foi particularmente celebrado no fandom de quadrinhos europeu, já que seu trabalho é muito amado por lá. Desde 2003, a cidade holandesa de Almere tem uma rua com seu nome e ruas em homenagem ao Pato Donald, Tio Patinhas (‘Dagoberto’), Gus Goose (‘Gijs Gans’), Gladstone Gander (‘Guus Geluk’), Daisy Duck (‘Katrien Duck’) e Gyro Gearloose (‘Willie Wortel’), todos parte de seu Distrito “Herois dos Quadrinhos”. Uma rua em Estocolmo, Suécia, The Carl Barks Väg, foi originalmente nomeada em homenagem ao trabalhador municipal de esgoto Carl Barks. Quando os fãs suecos de Carl Barks descobriram esta rua, eles a adotaram com humor e espiritualidade em nome de seu herói. Alguns dos personagens de Barks se tornaram mais populares em certas partes da Europa do que em outros lugares. John D. Rocketdock, por exemplo, está firmemente estabelecido como o principal rival do Tio Patinhas nos quadrinhos franceses e italianos da Disney, enquanto as editoras dinamarquesas e holandesas usam Flintheart Glomgold para esse papel. 

Entre 30 de maio e 31 de julho de 1994, Barks fez uma visita à Europa, encontrando-se com editoras da Disney em nada menos que 11 países: Islândia, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Suécia, Polônia, Alemanha, Itália, França, Holanda e Reino Unido. A turnê foi uma iniciativa do americano Bob Foster , que era editor de roteiro da editora dinamarquesa Gutenberg Hus na época. Uma viagem à Suíça também foi planejada, mas posteriormente cancelada. Para Barks, foi a primeira vez em sua vida que ele saiu dos Estados Unidos. Ele sempre quis viajar, mas não tinha o dinheiro necessário. Para a surpresa do artista de 93 anos, sua visita recebeu muita atenção da imprensa local. Na Suécia, o fã-clube local do Pato Donald, “NAFS(k)”, deu a ele um boné oficial do Junior Woodchucks. Na Alemanha, ele conheceu a tradutora do Pato Donald, Erika Fuchs, que desempenhou um papel importante na popularização de suas histórias entre os leitores de língua alemã. Apesar de ela já ser bastante idosa (87 anos), ele a elogiou chamando-a de “garota”. Na Finlândia, foi marcado um encontro com o caricaturista local Kari Suomalainen. Na maioria dos países, ele foi oficialmente recebido pelo prefeito da capital, Jacques Chirac em Paris. Na Noruega, Barks chegou a se encontrar com o Ministro da Cultura local, Aase Kleveland. Na Holanda, visitou o Rijksmuseum em Amsterdã e recebeu permissão especial para observar de perto a pintura “A Ronda Noturna”, de Rembrandt Van Rijn. A maioria dos visitantes não tem permissão para fazer isso, por medo de danificar a obra-prima.

O reconhecimento (tardio, mas justo)

Durante anos, Barks não era creditado em suas histórias. Apenas nos anos 1960, fãs mais atentos começaram a buscar “o homem por trás do bom pato”. A redescoberta de Carl Barks foi um evento transformador para o mundo dos quadrinhos. A partir daí, vieram exposições, prêmios e relançamentos em edições de luxo.

Hoje, ele é considerado um dos maiores nomes da história dos quadrinhos, ao lado de mestres como Hergé, Osamu Tezuka e Will Eisner.

Influência global

A influência de Barks transcende fronteiras. Na Europa, suas histórias são veneradas — especialmente em países como Alemanha, Itália e Dinamarca, onde gerações cresceram com suas aventuras.

Don Rosa, seu mais notório sucessor, baseou toda a Saga do Tio Patinhas no trabalho de Barks. Artistas como Matt Groening, Art Spiegelman e até George Lucas já declararam sua admiração. No Brasil, nomes como Primaggio Mantovi foram profundamente influenciados por ele.

O legado eterno do “Velho Pato”

Carl Barks faleceu em 2000, aos 99 anos. Sua morte foi notícia de destaque não apenas nos Estados Unidos, mas em muitos países europeus. Mas o mais impressionante é que sua obra segue viva. Crianças ainda descobrem Donald, Patinhas, Huguinho, Zezinho e Luizinho. Adultos continuam encantados com histórias que não perderam o frescor.

Ele provou que quadrinhos infantis podem ser sofisticados, engraçados, emocionantes e, acima de tudo, humanos.