Poucos nomes na história dos quadrinhos são tão discretos quanto essenciais. Um desses nomes é Floyd Gottfredson. Talvez você nunca o tenha visto estampado em pôsteres, livros ou exposições como Stan Lee, Carl Barks ou Jack Kirby. No entanto, se você já leu uma tira de jornal estrelada por Mickey Mouse, há grandes chances de ter experimentado o talento desse artista que, durante 45 anos, guiou a evolução narrativa do camundongo mais famoso do mundo.
Da infância em Utah ao mundo da Disney
Floyd Gottfredson nasceu em 1905, em Kaysville, Utah, em uma família grande e profundamente ligada à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Um acidente de caça durante a infância mudaria para sempre o curso de sua vida. Imobilizado por uma grave lesão no braço, o jovem Floyd precisou permanecer em casa durante meses. Foi nesse período de reclusão que ele descobriu sua paixão por desenhar.
Sem acesso fácil a professores, Gottfredson mergulhou nos cursos por correspondência — uma alternativa popular na época para aspirantes a artistas. Ele treinava com afinco, mesmo com a limitação física que o obrigava a desenhar com o movimento de todo o braço, e não apenas do pulso. Essa resiliência marcaria sua trajetória profissional nas décadas seguintes.
No fim da década de 1920, Gottfredson já publicava cartuns em revistas especializadas e no jornal Salt Lake City Telegram. Em 1928, um concurso de desenhos animados no qual ficou em segundo lugar foi o impulso que precisava: aos 23 anos, ele se mudou com a esposa para o sul da Califórnia, em busca de oportunidades maiores.
A entrada nos estúdios Disney
Chegando à ensolarada Califórnia, Gottfredson não encontrou espaço nos sete grandes jornais da região. Por um tempo, voltou à área de design cinematográfico — algo que já havia feito em Utah. No entanto, o cinema onde trabalhava foi demolido, e ele se viu novamente em busca de emprego. Por um capricho do destino, decidiu tentar a sorte nos estúdios Disney.
No dia 19 de dezembro de 1929, Gottfredson foi contratado como animador aprendiz na Walt Disney Productions. Nessa época, Mickey Mouse era uma estrela em ascensão. As tiras diárias de quadrinhos do personagem haviam começado em abril daquele ano, e, apesar de criadas por Walt Disney e desenhadas inicialmente por Ub Iwerks, o comando criativo já passava por diversas mãos.
O nascimento de uma lenda dos quadrinhos
Em maio de 1930, Win Smith, que desenhava as tiras do Mickey, recusou-se a continuar escrevendo os roteiros. Walt Disney precisava de alguém para assumir temporariamente a função — e essa responsabilidade caiu nas mãos de Floyd Gottfredson. Era para ser um arranjo de curto prazo. No entanto, aquele suposto “interino” se tornaria a principal força criativa por trás das histórias de Mickey Mouse nos quadrinhos pelas quatro décadas seguintes.
A primeira tira diária assinada por Gottfredson foi publicada exatamente em seu aniversário de 25 anos, em 5 de maio de 1930. Dois anos depois, ele também começou a trabalhar nas tiras coloridas dominicais, que continuaria até 1938. De 1930 a 1946, chefiou o departamento de quadrinhos da Disney, sendo sucedido por Frank Reilly.
Narrativas contínuas e o Mickey aventureiro
Ao contrário do que muitos imaginam, Mickey Mouse nos quadrinhos de Gottfredson não era apenas o camundongo bonachão dos desenhos animados. Ele era um verdadeiro herói de ação, envolvido em tramas com vilões, sequestros, viagens interplanetárias e confrontos com ladrões mascarados.
As tiras diárias formavam longas histórias contínuas, um estilo que antecipava o conceito moderno de narrativa serial. Personagens marcantes foram introduzidos nessa fase, como o vilão Phantom Blot, o excêntrico Eega Beeva e o misterioso Bat Bandit. Gottfredson também deu vida a coadjuvantes criados por Disney, como Morty e Ferdie Fieldmouse, sobrinhos de Mickey, e o malévolo Sylvester Shyster.
Gottfredson era mais do que apenas o desenhista. Nos primeiros anos, ele escrevia e ilustrava as tiras sozinho. A partir de 1932, passou a trabalhar com roteiristas como Webb Smith, Ted Osborne e Bill Walsh. Apesar disso, continuava colaborando ativamente no desenvolvimento das histórias, sugerindo mudanças e mantendo um olhar atento sobre o tom e a coerência narrativa.
Um trabalho coletivo, mas uma alma autoral
Embora outras mãos tenham roteirizado e arte-finalizado tiras ao longo dos anos — como Al Taliaferro, Manuel Gonzales e Del Connell —, foi a visão de Gottfredson que moldou a personalidade do Mickey nas tiras. Ele soube equilibrar humor, aventura e uma noção clara de moralidade. Não à toa, o crítico de animação Geoffrey Blum afirmou que a formação mórmon de Floyd, com sua ética positiva e seu autocontrole, moldou a essência do Mickey de Gottfredson: um cidadão exemplar, corajoso, fiel aos amigos e otimista mesmo diante dos maiores desafios.
A mudança de rumos e o legado duradouro
A partir da década de 1950, os quadrinhos de jornais enfrentaram uma pressão para se tornarem mais leves e acessíveis ao leitor casual. Por ordem da Disney, Gottfredson e seus colegas abandonaram as histórias contínuas e passaram a produzir apenas piadas autoconclusivas. Mesmo assim, ele permaneceu firme como o principal ilustrador das tiras diárias até sua aposentadoria em 1º de outubro de 1975.
Apesar da importância de sua obra, por muitos anos Gottfredson permaneceu um nome pouco conhecido do grande público. Foi só a partir da década de 1980 que seu trabalho começou a ser redescoberto e celebrado por fãs, estudiosos e editoras que passaram a reunir suas histórias em coletâneas luxuosas. Hoje, ele é amplamente reconhecido como uma das figuras mais influentes da história dos quadrinhos Disney.
O verdadeiro arquiteto do Mickey dos quadrinhos
Floyd Gottfredson transformou Mickey Mouse de um simples personagem de animação em um ícone da aventura cômica. Seus quadrinhos expandiram o universo do personagem, adicionaram profundidade psicológica e estabeleceram uma continuidade rica, cativante e influente.
Sua carreira é um testemunho de como talento, dedicação e visão artística podem florescer mesmo nos bastidores. Ele não apenas desenhou tiras — ele moldou o imaginário de gerações.
Se Mickey Mouse é hoje uma figura universalmente querida e reconhecida por sua coragem e esperteza, muito disso se deve ao trabalho incansável e criativo de Floyd Gottfredson. Em cada linha traçada e em cada roteiro sugerido, ele deixou um legado que merece ser lembrado — e celebrado — como uma verdadeira obra-prima da cultura pop.