Em meio aos gigantes da música brasileira que se tornaram sinônimos internacionais de sofisticação sonora — como Tom Jobim, João Gilberto e Vinícius de Moraes — há um nome que, embora menos celebrado no mainstream, realizou um feito absolutamente singular: Luiz Bonfá foi o único compositor brasileiro a ter uma música gravada por Elvis Presley.
Sim, você leu certo. O Rei do Rock cantou Bonfá. E, de alguma forma, essa história ficou soterrada sob as camadas de mitos mais evidentes da Bossa Nova e do rock norte-americano. Uma daquelas histórias que parecem lenda, mas que, ao serem investigadas, revelam não apenas autenticidade, mas também uma camada de injustiça histórica — afinal, por que Bonfá não está na mesma prateleira de glória que seus contemporâneos?
A jornada improvável de um menino do Rio
Luiz Bonfá nasceu no Rio de Janeiro, em 1922. Autodidata no violão desde os 11 anos, chamou a atenção do mestre uruguaio Isaías Sávio, que decidiu ensiná-lo gratuitamente diante da dedicação inabalável do garoto. Na juventude, Bonfá conquistou espaço nas rádios cariocas, recebendo o apelido de “O Menino de Ouro da Rádio Guanabara” — um prodígio do instrumento e um compositor instintivo, que parecia ter nascido com harmonia nas veias.
A virada veio em 1957, quando Bonfá decidiu embarcar para os Estados Unidos. Sem falar inglês, sem dinheiro e apenas com seu violão a tiracolo, apostou tudo no sonho de apresentar sua música ao mundo. O tipo de narrativa que faria qualquer cineasta salivar.
Segundo relatos compilados pelo site Primeira Página, Bonfá passou noites tocando de graça em festas nova-iorquinas, buscando uma oportunidade — e ela veio pelas mãos de Mary Martin, estrela da Broadway e figura influente no meio musical norte-americano. Impressionada pelo talento visceral do brasileiro, convidou-o para integrar sua orquestra. Era o início de sua trajetória internacional.
De “Luar no Rio” a “Almost in Love”
Corta para 1968. Elvis Presley está envolvido nas gravações do filme Live a Little, Love a Little — no Brasil, Viva um Pouquinho, Ame um Pouquinho. A trilha sonora precisava de uma canção romântica que soasse exótica, mas acessível. Algo com sofisticação latina, mas com potencial pop.
A conexão se deu, segundo Bonfá revelou em entrevista à Folha de S.Paulo (reproduzida pelo portal História Mundi), por meio da atriz Ava Gardner. Sim, Ava Gardner, diva hollywoodiana e ex-esposa de Frank Sinatra. Ela teria dito a Elvis: “Tem um garoto querendo que você faça a música de um filme dele”. Esse “garoto” era ninguém menos que Bonfá.
A música em questão nasceu de uma colaboração peculiar. A letra foi escrita por Randy Starr, compositor habitual nas trilhas de Elvis, enquanto Bonfá ficou encarregado de criar a melodia. Na verdade, Bonfá já tinha essa melodia pronta — era a canção “Luar no Rio”, lançada em 1966 no álbum A Cena Brasileira (intitulado The Brazilian Scene nos EUA). A versão adaptada recebeu uma nova letra e foi rebatizada como “Almost in Love”.
A faixa foi lançada como single ao lado da hoje icônica “A Little Less Conversation”. Apesar do relativo sucesso, a participação de Bonfá ficou obscurecida nos créditos. Alguns estudiosos, como Ernst Jorgensen em seu livro Elvis Presley: A Vida na Música, não o mencionam como músico presente nas sessões de estúdio. Ainda assim, a composição é creditada a ele e Randy Starr. A dúvida permanece: Bonfá e Elvis chegaram a se encontrar pessoalmente? Terá o brasileiro ouvido sua melodia ganhar vida na voz do Rei do Rock? O mistério continua.
Um gigante subestimado
A ausência de Bonfá nos grandes palcos do reconhecimento internacional não é reflexo de falta de qualidade, mas sim de um timing ingrato e de um estilo que fugia do “pacote exportação” da Bossa Nova. Sua música era mais melancólica, mais introspectiva — quase cinematográfica em sua abordagem harmônica. Enquanto Jobim mirava a elegância do jazz e João Gilberto reformulava o ritmo com sutileza, Bonfá escrevia temas que pareciam feitos para trilhas sonoras — e de fato, muitos foram.
O exemplo mais célebre é “Manhã de Carnaval”, composta ao lado de Antônio Maria para o filme Orfeu Negro (1959). A canção se tornou um standard mundial, regravada por nomes como Frank Sinatra, George Benson, Stan Getz e tantos outros. Um verdadeiro cartão de visitas da música brasileira, associado ao lirismo e à melancolia que caracterizam a identidade sonora do país.
Um legado a ser redescoberto
Bonfá participou de momentos cruciais da história da música brasileira no exterior. Esteve no lendário concerto no Carnegie Hall em 1962, ao lado de Jobim, João Gilberto e outros, apresentando a Bossa Nova para uma plateia extasiada. E, mesmo assim, seu nome é frequentemente omitido das listas mais populares de grandes compositores brasileiros.
Sua obra, no entanto, permanece viva — não apenas nas regravações constantes de seus temas, mas também em trilhas de filmes, comerciais, playlists lo-fi no YouTube e redescobertas por DJs e músicos contemporâneos. Bonfá é, talvez, o mais cinematográfico dos compositores brasileiros. Seu violão parece sempre narrar uma história — e, ironicamente, uma de suas melodias acabou na voz mais famosa do século XX.
Luiz Bonfá faleceu em 2001, aos 78 anos. Nunca viu sua história ser celebrada com a pompa que merecia. Como resumiu o jornalista Luiz Nassif: “Ele não teve o borogodó de alguns colegas mais midiáticos, mas teve talento de sobra”.
E o talento, realmente, não lhe faltou. Fica a pergunta: será que está na hora de avaliarmos o lugar de Bonfá na história da música brasileira — e mundial? Talvez, ouvindo “Almost in Love” com novos ouvidos, possamos, enfim, reconhecer o que sempre esteve ali: a assinatura única de um gênio discreto.