Renato Vinicius Canini não foi apenas mais um ilustrador brasileiro — ele foi uma revolução silenciosa nos quadrinhos nacionais. Seu traço livre, sua ironia elegante e sua dedicação a dar voz à brasilidade em um cenário dominado pelo padrão Disney marcaram uma geração inteira. Neste artigo, vamos mergulhar na vida e obra desse gênio criativo que ousou vestir Zé Carioca com camiseta, tirar-lhe a pompa e colocá-lo de chinelo nos morros do Rio — sem nunca ter estado lá.
O início de um artista inquieto
Canini nasceu em Nova Prata, em 22 de fevereiro de 1936, mas cresceu em diferentes cidades da Serra Gaúcha, incluindo Frederico Westphalen e Garibaldi. Órfão de pai aos dez anos, teve uma infância marcada por mudanças e pelas influências culturais locais. Mesmo vivendo em cidades interioranas, ele desenvolveu cedo uma paixão pelo desenho e por histórias visuais.
Sua juventude foi alimentada por referências curiosamente ecléticas. Era fã de Elvis Presley, da música italiana e de hinos evangélicos — um mix que já revelava sua versatilidade criativa e afetiva. Em Pelotas, cidade onde viveu boa parte da vida, conheceu sua esposa e companheira artística, Maria de Lourdes, também desenhista.
A carreira que começou em silêncio
Canini começou a trabalhar aos 21 anos na Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul, ilustrando para a revista infantil Cacique. Quando a publicação foi cancelada, foi deslocado para fazer desenhos técnicos na área de engenharia — uma atividade que considerava tediosa. Mas o inconformismo criativo não tardaria a se manifestar.
Durante esse período, ele manteve acesa sua chama artística contribuindo com charges e tiras para veículos como o Correio do Povo e a TV Piratini. Mas o salto viria mesmo em 1967, com um convite bastante peculiar: um pastor metodista, o Reverendo William Schisler Filho (ou apenas Dico), o chamou para ilustrar a revista infantil Bem-Te-Vi, em São Paulo. Canini agarrou a chance e mudou-se para o centro da efervescência editorial brasileira.
Zé Carioca: da Disney ao Brasil real
Depois de um tempo ilustrando para revistas infantis, Canini foi contratado pela Editora Abril, onde começou a contribuir para a revista Recreio. Mas foi no universo dos quadrinhos da Disney que ele encontraria o palco ideal para suas ousadias visuais.
Na época, o personagem Zé Carioca sobrevivia de reedições dos anos 40 e 50 ou de adaptações mal disfarçadas de roteiros de Mickey e Pato Donald. Faltava vida nova, faltava brasilidade. E é aí que entra Canini.
Com liberdade para criar histórias próprias nos estúdios brasileiros da Abril, ele reinventou Zé Carioca — não com explosões, mas com toques sutis e certeiros. Trocou o paletó e a gravata borboleta por camiseta e chinelos. Substituiu os subúrbios genéricos por morros, campos de futebol e feijoadas. E o melhor: imprimiu seu traço livre e cheio de personalidade, afastando-se do padrão rígido do estilo Disney.
Apesar de sua genialidade, Canini enfrentou resistência. Os editores alegaram que o público não estava respondendo bem à mudança estética. Após cerca de cinco anos e cerca de 135 histórias desenhadas (algumas também escritas por ele), foi desligado do projeto. Mesmo assim, deixou uma marca indelével. Como afirmou Waldyr Igayara de Souza, seu então chefe na Abril: “Ele era tão bom que superou todos os outros artistas. Inclusive o chefe.”
Um gênio que assinava escondido
A política da Disney, na época, não permitia que os artistas assinassem seus trabalhos. Mas Canini, com sua irreverência característica, deu um jeito de deixar sua marca. Criou o “Sabão Canini”, a “Loteca Canini” e até pequenos caramujos escondidos nos quadrinhos, como quem cochicha ao leitor: “fui eu quem fiz”.
Esse tipo de assinatura sutil foi também usado por artistas como Julio Shimamoto, ao desenhar O Fantasma, e pelo americano Keno Don Rosa, nas histórias de Tio Patinhas — uma tradição underground entre mestres dos quadrinhos.
Outros personagens e criações autorais
Mas Canini não era apenas o “pai adotivo” do novo Zé Carioca. Ele também criou personagens próprios repletos de ironia, crítica social e um humor agridoce.
O Dr. Fraud, por exemplo, era um psicólogo excêntrico que protagonizou algumas edições da revista Patota, da Editora Artenova, e foi relançado nos anos 90. Já Kaktus Kid, paródia de cowboys do velho oeste inspirada em Kirk Douglas, era dono de uma funerária em busca de “clientes” — sátira escancarada que brilhou na revista “Crás! da Abril.
Outro personagem memorável foi o pequeno indígena Tibica, criado em 1978 para o Projeto Tiras, também da Abril. Com mensagens ecológicas e espirituais, o personagem era apresentado ora de forma poética, ora com ironia fina. Como escreveu a autora Mery Weiss, Tibica falava da ecologia com alma e sensibilidade — muito antes de o tema virar moda.
A luta por quadrinhos nacionais: a experiência da CETPA
Nos anos 60, Canini fez parte de uma tentativa ousada de nacionalizar os quadrinhos com a CETPA (Cooperativa Editora de Trabalho de Porto Alegre). Junto de outros nomes como Júlio Shimamoto e Getúlio Delphim, participou da criação de personagens brasileiros como o Zé Candango, um cangaceiro que enfrentava super-herois americanos com astúcia e bom humor.
Apesar do apoio do então governador Leonel Brizola, a cooperativa durou apenas dois anos. A renúncia de Jânio Quadros e o contexto político turbulento da época minaram a continuidade do projeto. Ainda assim, a CETPA foi uma das primeiras tentativas estruturadas de se criar uma identidade brasileira nos quadrinhos — e Canini esteve na linha de frente.
Reconhecimento e legado
Mesmo com sua trajetória marcada por idas e vindas, Canini foi amplamente reconhecido em vida. Em 2005, recebeu o título de Cidadão Pelotense, homenagem simbólica da cidade que ele escolheu como lar.
Sua obra é hoje referência não apenas pelo conteúdo artístico, mas também pela coragem. Canini ousou reinventar um personagem global para falar com o público brasileiro de forma autêntica, crítica e acessível. Sua assinatura, muitas vezes escondida, está agora cravada na memória dos fãs dos quadrinhos.
O traço que virou símbolo
Renato Canini faleceu em 30 de outubro de 2013, em Pelotas. Deixou um legado que vai muito além do traço elegante ou da crítica sutil. Ele representa a luta por uma identidade nacional nos quadrinhos, um Brasil possível dentro de balões de fala e quadrinhos coloridos. Um Brasil que fala alto, ri de si mesmo e não tem medo de ser representado com verdade.