Poucos filmes conseguem alcançar o feito de serem amplamente celebrados por críticos e jurados de premiações e, ao mesmo tempo, se tornarem alvo de controvérsias tão intensas entre detratores. “Emilia Pérez”, escrito e dirigido pelo aclamado cineasta francês Jacques Audiard, é um desses raros exemplos. O filme conquistou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, além de um inédito reconhecimento conjunto de melhor atuação para suas quatro protagonistas. Mais recentemente, acumulou impressionantes quatro Globos de Ouro, cinco European Film Awards e onze indicações ao Bafta. Com o Oscar às portas, a produção desponta como um dos favoritos na disputa.
Entretanto, o musical em espanhol, ambientado no México e filmado predominantemente na França, não apenas polariza opiniões por seu mérito artístico, mas também pela forma como aborda questões de identidade trans e representatividade cultural. O debate não se limita ao enredo, mas atinge o núcleo do processo de produção, elenco e execução da obra.
Uma Narrativa Divisiva
A história, centrada em um traficante mexicano que decide fazer a transição de gênero enquanto busca justiça restaurativa para os desaparecidos no México, parece inovadora à primeira vista. No entanto, o contexto sensível que envolve a violência relacionada ao narcotráfico no país trouxe críticas acaloradas. O México, desde 2006, contabiliza mais de 500 mil mortes e 100 mil desaparecimentos ligados ao crime organizado. A escolha de um musical para retratar esse tema tão doloroso gerou questionamentos sobre a adequação do gênero artístico à narrativa.
Além disso, a possibilidade de Karla Sofía Gascón se tornar a primeira mulher trans indicada ao Oscar de Melhor Atriz reacendeu debates sobre representatividade. Embora celebrada por alguns, a performance de Gascón enfrentou críticas de organizações LGBTQIA+, como a Glaad, que classificaram a caracterização do filme como “retrógrada”.
O Debate Cultural
As críticas mais contundentes, entretanto, vieram do próprio México. Críticos e figuras da indústria apontaram para o pouco envolvimento de mexicanos na produção, tanto no elenco quanto na equipe técnica. Apesar de abordar temas profundamente ligados à realidade mexicana, o filme foi majoritariamente produzido em estúdios na França. Isso levou o roteirista mexicano Héctor Guillén a se posicionar publicamente, chamando o projeto de “zombaria eurocentrista”.
Entre as protagonistas, apenas Adriana Paz é mexicana. Karla Sofía Gascón é espanhola, Selena Gomez, apesar de herança mexicana, é americana, e Zoe Saldaña tem ascendência dominicana. A desconexão cultural foi percebida, por exemplo, na dificuldade de Gomez em atuar em espanhol, língua na qual ela precisou ser treinada para o papel. Mesmo com boas intenções, a falta de imersão e maior participação local contribuiu para o distanciamento entre o filme e a realidade que ele propõe representar.
A Defensiva de Jacques Audiard
Audiard justificou suas escolhas artísticas apontando para a natureza operística da obra. Segundo o cineasta, o uso de canto e dança permite uma distância estilística que potencializa a narrativa emocional. O diretor reconheceu ter visitado o México em diversas ocasiões durante a pré-produção, mas afirmou que as imagens reais do país não correspondiam à visão estilizada que tinha em mente. Assim, optou por filmar em Paris, injetando o “DNA de uma ópera” no projeto.
Audiard também argumentou que cineastas não precisam necessariamente pertencer à cultura que retratam. “Shakespeare precisou ir a Verona para escrever sobre aquele lugar?”, questionou ele em entrevista recente. Contudo, sua abordagem despertou acusações de apropriação cultural e exclusão, refletindo debates mais amplos sobre autenticidade na arte contemporânea.
Divergências e Repercussão Global
Se por um lado as críticas ao filme foram amplificadas pelas redes sociais, por outro, “Emilia Pérez” encontrou defensores influentes. Guillermo del Toro, diretor de “A Forma da Água”, e Issa Lopez, criadora de “True Detective: Night Country”, elogiaram o filme por sua ousadia artística. Ambos destacaram que o cinema também deve se aventurar em terrenos incertos para gerar discussões significativas.
Além disso, críticos como James Mottram, do Reino Unido, elogiaram a originalidade da obra. Para ele, misturar temas como transição de gênero, violência do narcotráfico é um musical é um feito de destreza narrativa. No entanto, até mesmo defensores reconhecem as falhas culturais na execução.
Uma Reflexão sobre Autenticidade e Apropriação
A polêmica em torno de “Emilia Pérez” exemplifica um dilema recorrente no cinema global: como contar histórias de culturas alheias com respeito e autenticidade? Para Héctor Guillén, a inclusão de mais criadores e ativistas mexicanos poderia ter transformado o filme em um marco cultural legítimo. Por outro lado, Zoe Saldaña argumentou que permitir cineastas de fora da cultura abordar esses temas pode trazer perspectivas inovadoras e impactantes.
Entre críticas e aplausos, o fato é que “Emilia Pérez conseguiu algo raro: provocar discussões sobre arte, representatividade e responsabilidade cultural. A obra se torna, assim, um espelho das tensões contemporâneas entre globalização e identidade cultural.