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Fontaines D.C. relança Romance com homenagem a David Lynch

Fontaines D.C. relança Romance em versão deluxe com cover de “In Heaven” em homenagem a David Lynch. Ouça o disco e descubra os detalhes.

Em um movimento inesperado, mas esteticamente calculado, a banda irlandesa Fontaines D.C. surpreendeu seus fãs e a crítica musical ao lançar, sem alarde, a versão deluxe do seu elogiado álbum Romance, originalmente lançado em 2024. A nova edição do disco chegou aos serviços de streaming no último fim de semana e trouxe consigo três faixas bônus que expandem ainda mais o universo sonoro e emocional da obra — agora com um toque fantasmagórico, quase cinematográfico, digno de uma sessão de madrugada com David Lynch.

O inesperado tributo a um mestre do surrealismo

Entre as faixas adicionais, uma chamou atenção de imediato: a execução ao vivo de “Starburst”, faixa já conhecida do público, mas aqui entrelaçada a uma versão etérea de “In Heaven (The Lady in the Radiator Song)”, canção eternizada no clássico Eraserhead (1977), dirigido por ninguém menos que David Lynch. A inclusão dessa faixa, que nunca havia sido registrada oficialmente pelo grupo, ecoa como uma espécie de elegia, uma despedida simbólica a Lynch, que faleceu em 16 de janeiro de 2025. Para os que acompanham tanto o cinema do diretor quanto a carreira do Fontaines D.C., a conexão faz todo o sentido — e é profundamente tocante.

Atmosfera fúnebre e beleza soturna

“In Heaven” não é apenas uma canção: ela é um mantra fúnebre, uma canção de ninar para os condenados. Escrita por Peter Ivers, o músico experimental que colaborou com Lynch na trilha de Eraserhead, a faixa é cantada por uma figura surreal chamada “A Dama do Radiador”, e carrega a seguinte mensagem: “In Heaven, everything is fine”. É o tipo de frase que pode ser lida como conforto ou ameaça, dependendo do seu estado emocional — algo que o Fontaines D.C. entende muito bem.

Aliás, a história de Ivers adiciona mais uma camada à narrativa. O músico foi brutalmente assassinado em 1983, em seu apartamento em Los Angeles, e o crime permanece sem solução. Seu legado, porém, vive em interpretações como essa, feitas por artistas que compreendem o peso emocional de sua obra.

Romance: uma virada estética e emocional

Quando Romance foi lançado em 2024, ele já sinalizava uma mudança no som do Fontaines D.C. Se antes a banda flertava com o post-punk cru de suas raízes em Dogrel (2019) ou com atmosferas mais sombrias e densas em A Hero’s Death (2020), aqui ela mergulha de cabeça em uma sonoridade mais refinada, melódica e com toques de art rock, dream pop e uma pontinha de industrial — uma espécie de Loveless encontrá The Downward Spiral, para os que gostam de comparar. A versão deluxe amplia ainda mais esse leque, misturando performance crua com tributo reverente.

O disco é também o primeiro trabalho da banda após uma pausa estratégica em 2023, o que permitiu ao vocalista Grian Chatten e companhia redescobrir sua identidade artística. O resultado é um álbum maduro, cheio de nuances, que convida a múltiplas escutas — e que agora, com essas faixas bônus, se torna ainda mais envolvente.

Da Irlanda para o mundo (menos o Brasil, infelizmente)

A expectativa em torno do Fontaines D.C. era enorme — especialmente entre os fãs brasileiros. O grupo estava com duas apresentações marcadas em São Paulo: uma no Lollapalooza Brasil 2025 e outra na casa Audio, que prometia ser um evento à parte para os mais aficionados. No entanto, poucos dias antes das datas, veio o balde de água fria: os shows foram cancelados.

A banda não deu maiores detalhes sobre os motivos, apenas citou “circunstâncias imprevistas”, o que naturalmente gerou frustração entre os fãs sul-americanos. Alguns especulam que o cancelamento tenha a ver com o luto pela morte de Lynch, um ídolo declarado de Grian Chatten — embora nada tenha sido confirmado oficialmente.

Entre o pop melancólico e o rock com alma

Mesmo com o cancelamento, o novo lançamento mostra que o Fontaines D.C. continua investindo em sua evolução artística. Há algo de comovente na forma como a banda honra suas influências, e a escolha por incluir “In Heaven” é mais do que um gesto estético — é uma ponte emocional entre mundos. O grupo demonstra sensibilidade para o simbólico e o real, entregando uma versão que preserva o mistério da original, mas com sua própria assinatura melódica e intensidade emocional.

Se Lynch ensinou algo ao mundo, foi que o desconforto pode ser belo, e que a arte mais impactante é aquela que incomoda tanto quanto consola. O Fontaines D.C. entendeu esse recado. E agora o repassa, faixa por faixa.

Onde ouvir e assistir

Para os que desejam mergulhar de cabeça nesse universo, a versão deluxe de Romance já está disponível nas principais plataformas digitais — incluindo Spotify, Apple Music, Deezer e Tidal. A nova tracklist inclui:

  • “Starburster” (live)
  • “In Heaven” (cover)
  • “Love Beyond the Grave” (bonus track inédita)
  • Faixas originais do Romance

Além disso, a icônica cena de Eraserhead com a performance de “In Heaven” pode ser facilmente encontrada no YouTube, e continua sendo uma das mais marcantes da história do cinema surrealista.

Num cenário musical cada vez mais saturado de lançamentos previsíveis, é refrescante — e, por que não, emocionante — ver uma banda do calibre do Fontaines D.C. usar o relançamento de um álbum como plataforma para homenagear uma figura tão singular como David Lynch. O disco Romance, agora em sua versão deluxe, não é apenas uma coleção de músicas: é um pequeno gesto de resistência artística, uma ode à melancolia, ao estranho e ao sublime.

Se tudo está bem no céu, como diz a canção, aqui na Terra ainda temos bandas como o Fontaines D.C. para nos lembrar disso — de forma bela, sombria e inesquecível.