O movimento manguebeat, que floresceu nas margens lamacentas do Recife nos anos 90, foi uma revolução sonora que uniu as batidas eletrônicas da modernidade ao calor dos tambores tradicionais. A semente plantada pela trupe de Chico Science e Nação Zumbi, ao misturar o regional e o global, gerou frutos que continuam a nutrir a música brasileira décadas depois. O que era visto como uma ousada experimentação, hoje se consagra como um dos pilares mais dinâmicos da cultura nacional. No rastro dessa explosão criativa, novos nomes emergem, herdeiros legítimos desse legado que se reinventa e floresce em solos cada vez mais férteis.
Entre esses herdeiros, o pernambucano Zé Manoel surge como um dos artistas mais promissores do pós-mangue. Seu trabalho é um diálogo entre o clássico e o popular, onde o piano—instrumento comumente associado à música erudita—se encontra com tambores de maracatu, alfaias e guitarras distorcidas. Essa fusão, que poderia parecer improvável, torna-se uma experiência sonora rica e envolvente, criando uma ponte entre o passado e o presente, entre a tradição e a inovação.
Outro nome que brilha nesse cenário é o poeta e cantor Martins. Nascido no Sertão, terra de Luiz Gonzaga, e moldado pela Zona da Mata Norte, berço do maracatu rural, Martins traz em sua música uma profunda conexão com as raízes culturais nordestinas. Seus versos, muitas vezes poéticos e introspectivos, ganham vida ao som da rabeca, da guitarra e da sanfona, instrumentos que ressoam com a força de sua terra natal, mas que, ao mesmo tempo, são transportados para um novo contexto, onde dialogam com o pop e o psicodélico.
Com apenas 22 anos, o forrozeiro Zé Lord é outro exemplo dessa nova geração que, inspirada pelo manguebeat, encontra em suas raízes a matéria-prima para inovar. Seu primeiro álbum, “De Volta à Origem”, é uma homenagem aos grandes mestres do forró, como Gonzagão e Dominguinhos, mas com uma roupagem contemporânea que o conecta ao presente. Em suas palavras, “quis trazer essa mescla de forró raiz com estilizado, assim como Chico [Science], que também trouxe inovação para o som pernambucano.”
A trajetória de Zé Manoel é igualmente marcada por essa busca por um som que seja ao mesmo tempo autêntico e inovador. Crescido nas regiões áridas de Pernambuco, Bahia e Ceará, Zé Manoel teve suas primeiras influências na música sertaneja, mas foi em Recife que ele encontrou o ambiente propício para desenvolver sua arte. Envolvido pela cena pós-mangue, foi impactado por bandas como Mombojó, Academia da Berlinda e Orquestra Contemporânea de Olinda, cujos ritmos se tornaram o terreno fértil para o florescimento de sua carreira.
O primeiro álbum de Zé Manoel, homônimo, refletia muito de sua relação com Petrolina, sua terra natal. No entanto, já em seu segundo trabalho, em parceria com Juliano Holanda, o artista começou a delinear mais claramente sua identidade musical, fortemente influenciada pelo manguebeat, mas com um olhar voltado para as paisagens urbanas do Recife. Essa evolução culmina em sua decisão de se mudar para São Paulo, onde encontrou apoio para profissionalizar e expandir seu trabalho, fazendo de sua música uma linguagem universal.
Martins, por sua vez, segue uma trajetória que também alia o respeito pelas tradições a um desejo de inovar. Desde que comprou sua primeira rabeca, sob a influência do grupo Mestre Ambrósio, ele se viu impelido a explorar as possibilidades desse instrumento, que o conduziu ao cavalo marinho, uma das manifestações mais autênticas da cultura popular nordestina. Seu segundo álbum solo, que mistura cavalo marinho, afoxé, maracatu e guitarras psicodélicas, é uma celebração do amor e da revolução pessoal, uma proposta de reconexão entre o eu e o mundo através da arte.
Outro ponto que merece destaque é a maneira como esses artistas têm sido recebidos pela crítica e pelo público. Se há trinta anos a fusão de elementos regionais com a modernidade sonora ainda soava como uma aposta arriscada, hoje essa mistura é celebrada e valorizada. A música que antes era considerada exótica ou fora dos padrões, agora é reconhecida por sua capacidade de unir o que há de melhor nos dois mundos—o tradicional e o contemporâneo.
Martins, com sua voz aguda, andrógina e cativante, é um exemplo de como essa nova geração de artistas conseguiu não apenas captar, mas também expandir os horizontes da música brasileira. Suas composições, já gravadas por nomes consagrados como Ney Matogrosso e Daniela Mercury, são prova de que a poesia e a musicalidade nordestina têm um apelo universal.
Zé Lord, por sua vez, representa a renovação do forró, trazendo para o gênero uma nova vitalidade sem perder de vista suas raízes. Seu trabalho, que já começa a chamar a atenção no cenário nacional, é uma prova de que a essência do manguebeat—esse espírito de inovação a partir da tradição—continua viva e pulsante.
Em resumo, a cena pós-manguebeat é um terreno fértil para o surgimento de novos talentos que, ao respeitar suas raízes, não têm medo de inovar e experimentar. Seja através do piano de Zé Manoel, das letras poéticas de Martins ou do forró contemporâneo de Zé Lord, o legado do manguebeat segue inspirando e renovando a música brasileira, provando que a mistura de ritmos e culturas é uma fonte inesgotável de criatividade e expressão artística.