Enquanto Isso… Nos Quadrinhos: Mafalda, o Feminismo e Outras Revoluções
Dois meses após a morte de Quino, o criador da indomável Mafalda, seguimos revisitando sua obra com a sensação de que ela nunca foi tão atual. A cultura pop nos proporciona esse dom do eterno presente: personagens que permanecem vivos porque seus conflitos continuam sendo nossos. E, no caso de Mafalda, esse “nosso” ecoa particularmente no feminino.
A novidade editorial Mafalda – Feminino Singular, que reúne tiras centradas na visão crítica da menina sobre o universo das mulheres, surge como um convite não apenas à nostalgia, mas à reflexão. Não se trata de tiras inéditas, mas de uma curadoria inédita, num formato que visa destacar uma faceta específica de Mafalda: sua visão profundamente feminista — mesmo antes que essa palavra tomasse o espaço político e cultural que ocupa hoje.
Meninas de Vermelho, Meninas em Rebeldia
Maria Clara Carneiro, professora e tradutora, assina a introdução exclusiva da edição brasileira e oferece um ensaio potente. Ela observa como a história das HQs está repleta de “menininhas de vermelho”: Nancy, Little Lulu, Mônica. Mas entre todas elas, Mafalda é a que mais explicitamente veste o vermelho como símbolo político.
Na tradição das tiras de jornal, a crítica social nem sempre é tarefa atribuída às crianças. Mas Quino — como Charles Schulz, de Peanuts — entendeu que a inocência infantil pode ser o espelho mais cruel da hipocrisia adulta. E aqui entra Umberto Eco, em um famoso prefácio que introduziu Mafalda ao público italiano: se Charlie Brown era Freud, Mafalda era Che Guevara.
A Herança Visual e Filosófica de Schulz
As semelhanças entre Peanuts e Mafalda não são apenas estruturais — ambas tiras são ancoradas em texto e introspecção, em vez de gags visuais. Também há ecos visuais: os gritos à la Snoopy, os choros que ecoam Charlie Brown, os balões de fala que explodem na página como ideias indomáveis.
Mas Quino não era apenas um discípulo de Schulz. Ele trouxe uma lente latino-americana ao mundo infantil, uma lente moldada por ditaduras, desigualdades e urgências políticas. Mafalda conversa com o globo terrestre como se ele fosse um paciente doente. E, de certo modo, era mesmo.
Susanita: O Contraponto Conservador
E o que seria de uma personagem subversiva sem um antagonista à altura? Susanita, com sua visão idealizada da maternidade e do papel feminino, funciona como o espelho invertido de Mafalda. Enquanto uma projeta futuros filhos como troféus e acha que o dedo indicador serve para dizer “sim” aos homens, a outra prefere questionar, agredir — simbolicamente ou não — e desmantelar esses códigos de submissão.
Ao olhar para sua mãe — dona de casa dedicada, símbolo do sacrifício feminino — Mafalda não vê heroísmo, mas conformismo. O gesto de lavar, passar, cozinhar vira “brincar de ser medíocre”, e é neste tipo de crítica que a personagem se aproxima das discussões contemporâneas sobre divisão de tarefas, autonomia e empoderamento.
Letras que Gritam: Quino e a Estética do Verbo
Um traço distintivo da obra de Quino, também ressaltado por Carneiro, é a maneira como o texto ocupa o espaço das páginas. Letras que saltam dos balões, que dominam os quadros, que impõem ritmo. Algo que remete a Millôr Fernandes, outro gênio da fusão entre verbo e imagem.
Quino entendia que as palavras eram tão importantes quanto os traços. Que a piada não era apenas o desenho, mas o conteúdo. A piada de Mafalda não é visual — é filosófica, política, crítica. Ela pensa, protesta, sugere, rejeita. É mais do que uma criança tagarela: é um símbolo de resistência.
Outras Revoluções: De Windsor-Smith a Morrison
Mas Enquanto Isso… nos Quadrinhos não é feito só de Mafalda. O lançamento de Monsters, a graphic novel há décadas gestada por Barry Windsor-Smith, finalmente vai acontecer. São 380 páginas de trauma, monstruosidade e crítica institucional que começaram como uma história do Hulk e se transformaram em algo mais — uma jornada entre abuso familiar, experimentos governamentais e as sombras da alma humana. É uma narrativa que, como Mafalda, confronta estruturas de poder e identidade.
E se estamos falando de desestruturar o conhecido, impossível não citar Grant Morrison — o mestre da metaficção, do caos mágico e agora, também, da não-binariedade. Sua declaração de identidade de gênero foi importante, mas foi apenas um ponto em um discurso maior sobre linguagem, mitologia e futuro. Morrison sugere que a Covid-19 foi uma expressão do “Eon de Maat”, uma nova era espiritual que esvaziou igrejas e exaltou médicos. E, como sempre, mistura religião, psicodelia e cultura pop em doses iguais.
Chacal e o Faroeste Quebrado
Voltando para o Brasil, o resgate de Tony Carson: Chacal merece atenção. Criado como uma continuação nacional de um faroeste italiano, o personagem simboliza uma época em que editoras brasileiras improvisavam — e criavam, muitas vezes, com resultados surpreendentes.
A iniciativa de recuperar esse material em formato Bonelli, com histórias desenhadas por Homobono e Jordí Martinez, é um tributo à criatividade de um mercado que sempre lutou com as armas que tinha. É memória e resistência, em traço e papel.
O Sonho Continua: Sonhonauta e o Quadrinho Digital
Por fim, Sonhonauta de Shun Izumi se firma como um dos trabalhos mais intrigantes do quadrinho nacional contemporâneo. Cada nova edição traz uma capa que impressiona e páginas que transitam entre estilos com fluidez onírica. É a prova de que o quadrinho brasileiro está vivo, inventivo e desafiador — ainda que longe dos holofotes.
Com edições disponíveis por menos de cinco reais, é uma porta de entrada acessível para uma obra que merece ser descoberta.
O Legado é Agora
O que une Mafalda, Monsters, Grant Morrison, Chacal e Sonhonauta? Todos desafiam normas. Todos subvertem convenções. Todos nos lembram que os quadrinhos são — e sempre foram — um território de contestação, de revolução silenciosa, de imaginação política.
Em tempos de polarização e urgência, nada mais necessário do que resgatar essas vozes — sejam elas de meninas argentinas com vestidos vermelhos ou de monstros que habitam nossas sombras.
Porque, como diz Mafalda, o mundo está mal, muito mal… mas talvez ainda dê tempo de consertá-lo. E os quadrinhos podem ser a chave.