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Ultraje a Rigor: A Revolução Irreverente do Rock Brasileiro nos Anos 80

Em 1983, o cenário musical brasileiro vivia uma transformação radical. No Rio de Janeiro, bandas como Blitz, Os Paralamas do Sucesso e Kid Abelha estavam dominando as paradas de sucesso com um rock inovador e contagiante. Enquanto isso, em São Paulo, um movimento alternativo surgia com bandas que, embora menos visíveis, possuíam um discurso mais sério e introspectivo. Essas bandas, muitas vezes, se viam invejando o sucesso carioca e sonhavam em conquistar o espaço nas rádios. No entanto, a banda paulista que se destacaria e entraria de vez no cenário musical era bem diferente do restante: o Ultraje a Rigor.

A banda, formada por Roger Moreira, Edgard Scandurra, Maurício Rodríguez e Leóspider, trouxe um frescor irreverente ao rock nacional. Sua postura sarcástica e letras divertidas não os tornaram menos inteligentes, mas garantiram uma identidade única. O Ultraje a Rigor surgiu em um período de intensa mobilização política no Brasil, com a campanha das Diretas Já ganhando força. A música “Inútil”, uma crítica ao cenário político e social, se encaixava perfeitamente no contexto daquele momento.

Embora “Inútil” não tenha sido um sucesso imediato, sua provocação e crítica social abriram portas para que o Ultraje a Rigor se tornasse um dos grandes nomes do rock brasileiro dos anos 80. Mas, antes de mergulharmos na análise dessa canção emblemática, é importante entender a trajetória de Roger Moreira e os bastidores da criação da banda.

Roger Moreira, nascido em São Paulo em 1956, teve uma infância marcada por uma busca incessante por novos desafios. Atuou em comerciais, estudou arquitetura no Mackenzie e passou em um teste de uma associação para pessoas de alto QI. A música sempre foi uma paixão, e ele se dedicou a ela, morando nos Estados Unidos e se envolvendo com o rock dos anos 60, especialmente os Beatles. De volta ao Brasil, Roger formou uma banda para tocar covers em bares paulistanos durante o início dos anos 80, quando a nova onda do rock nacional estava começando a emergir.

Foi nesse cenário que Roger conheceu Leóspider, seu colega de escola, e juntos decidiram formar o Ultraje a Rigor. O nome da banda passou por várias mudanças antes de se estabelecer. Inicialmente, foram sugeridos nomes aleatórios até que Roger propôs “Ultraje”. O acréscimo “a Rigor” foi uma sugestão de Edgard, e é uma brincadeira com a expressão “ultraje a rigor”, refletindo a irreverência e a postura brincalhona da banda. A irreverência do Ultraje a Rigor, visível até mesmo em suas versões de músicas de outras bandas, fez com que fossem vistos como estranhos na cena alternativa da época, marcada por um discurso mais sério.

A banda se destacou por sua habilidade em criar uma música que, embora parecesse leve e divertida, estava repleta de crítica social e política. Ricardo Alexandre, em seu livro “Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos Anos 80”, descreve como o Ultraje a Rigor estava se distanciando do no wave, um movimento musical de Nova York que rejeitava a new wave por considerá-la excessivamente comercial. Em vez disso, a banda se inspirou no rock básico dos Beatles, dos Rolling Stones, dos Beach Boys e de Erasmo Carlos, trazendo uma abordagem mais direta e autêntica.

O ponto de virada para o Ultraje a Rigor ocorreu quando a banda foi descoberta por Pena Schmidt, um técnico de som que havia trabalhado com os Mutantes na década de 70. Pena estava atento à cena underground emergente em São Paulo e, ao ouvir o Ultraje a Rigor, decidiu apresentar a banda a André Midani, um executivo musical da WEA, na época presidente da gravadora. Midani viu potencial na banda e solicitou que eles gravaram duas músicas para um compacto: “Me Deixa Tocar” e “Inútil”.

A gênese da música “Inútil” é uma história interessante. Roger Moreira teve a ideia para a canção enquanto tomava banho. Inicialmente, pensou em um verso em inglês, “Why don’t you?”, que depois se transformou em “Por que você não?” em português. A letra evoluiu para uma crítica ácida e direta ao povo brasileiro, explorando a ideia de que, se os brasileiros não conseguem gerenciar suas próprias vidas, como poderiam escolher um bom presidente?

O processo de gravação foi marcado por desafios. “Inútil” enfrentou a censura devido ao seu conteúdo crítico. Os pareceres dos censores alegavam que a música retrata o povo brasileiro de forma negativa e que, portanto, era uma forma de propaganda comunista. O primeiro recurso de Midani foi indeferido, e o segundo demorou alguns dias, mas eventualmente foi aprovado. A música foi tocada em um comício das Diretas Já, o que ajudou a aumentar sua popularidade e a sua relevância política.

A letra de “Inútil” é uma crítica contundente, que também pode ser interpretada como uma defesa implícita da ditadura ou uma crítica ao sistema em vez de ao povo. A canção ironiza a competência percebida na sociedade brasileira, abordando desde a falta de infraestrutura até a decepção com a Copa de 1982. A conexão com Pelé, que teria supostamente dito que os brasileiros não sabiam votar, adiciona uma camada de complexidade à canção, embora as declarações reais de Pelé não correspondam exatamente à imagem popularizada.

A canção se tornou um símbolo dos protestos pelas Diretas Já, e a banda Ultraje a Rigor encontrou uma nova visibilidade. Com a liberação da música e o lançamento de um compacto, o Ultraje a Rigor começou a consolidar seu espaço na cena musical. Apesar da venda inicial modesta de 30.000 cópias, a banda continuou a ganhar notoriedade, especialmente quando os Paralamas do Sucesso começaram a tocar “Inútil” em seus shows como uma forma de protesto contra a rejeição da emenda das Diretas.

O sucesso do Ultraje a Rigor também foi impulsionado pela sua participação no Rock in Rio em 1985. A banda, que já havia lançado dois compactos, viu sua popularidade crescer com o lançamento do álbum “Ultraje a Rigor”, que incluía novas músicas como “Ciúme” e “A Canção Título”. A versão regravada de “Inútil” no álbum fez com que a música fosse apreciada de uma forma muito mais refinada.

A trajetória do Ultraje a Rigor e o impacto de “Inútil” no rock brasileiro são testemunhos da força da irreverência e da crítica social na música. A banda, com seu estilo único e letras provocativas, não apenas desafiou o status quo da cena musical da época, mas também deixou uma marca indelével na história política e cultural do Brasil. Com uma abordagem ousada e uma atitude desafiadora, o Ultraje a Rigor conseguiu transcender as barreiras da censura e se estabelecer como uma das bandas mais importantes do rock nacional dos anos 80.



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