Há algo quase metafísico em “Yesterday”, dos Beatles. Não apenas pela melodia doce e melancólica que parece pairar no ar como uma lembrança que não conseguimos esquecer, mas pela forma como ela literalmente surgiu — vinda de um sonho, carregada de luto, culpa e, claro, de um talento melódico que beira o surreal. Com mais de 2.500 versões registradas oficialmente, recordes no Guinness Book e milhões de execuções nas rádios americanas, essa música de pouco mais de dois minutos é o equivalente musical de uma pintura renascentista em preto e branco: simples, mas carregada de complexidade emocional.
Agora, se você está pensando que ela foi fruto de um trabalho meticuloso em estúdio, rodeado por Lennon, Harrison e Ringo, pense de novo. Na verdade, a criação de “Yesterday” é uma das histórias mais improváveis e fascinantes da música pop — e começa não em Liverpool, mas… em Portugal. Sim, Portugal.
O sonho, os ovos mexidos e a dúvida existencial
Vamos rebobinar a fita. Paul McCartney, o rosto angelical e a mente afiada dos Beatles, teve a ideia melódica de “Yesterday” enquanto dormia. É isso mesmo. Em suas palavras, ele acordou com a música praticamente pronta em sua cabeça. Correu até o piano e registrou o que seria, no início, uma brincadeira lírica: “Scrambled Eggs / Oh my baby how I love your legs”. Irônico, nonsense e muito distante da letra final.
Durante meses, McCartney ficou paranoico achando que tinha, sem querer, plagiado alguém. Ele tocava a melodia para amigos, produtores e músicos, esperando o temido “Ah, isso é de fulano”. Mas nada. Ninguém reconhecia a música. Era genuinamente dele — um presente do subconsciente ou talvez, como diriam os mais esotéricos, um sussurro divino.
A culpa, a mãe e a viagem até o sul de Portugal
Se a melodia surgiu como um raio em céu azul, a letra demorou a chegar. E aqui a coisa fica pessoal — bem pessoal. Anos depois, Paul revelou que a inspiração lírica de “Yesterday” vinha de um arrependimento profundo relacionado à sua mãe, Mary McCartney, que morreu de câncer quando ele tinha apenas 14 anos.
Em uma entrevista recente ao podcast A Life in Lyrics, Paul contou que, certa vez, zombou do jeito refinado da mãe falar. “Ela dizia ‘ask’ de forma muito britânica, e eu a imitei de forma debochada. Ela ficou sem graça. Depois que ela morreu, pensei: ‘Droga, queria nunca ter dito aquilo’.”
Esse tipo de confissão não só humaniza a lenda como ilumina o tom triste e arrependido da canção. A palavra “yesterday” (“ontem”) deixa de ser apenas uma referência temporal e se transforma num símbolo de tudo que não podemos desfazer. Tudo que diríamos ou faríamos diferente… se tivéssemos a chance.
Portugal entra em cena
Agora, vamos a um fato pouco conhecido: a letra de “Yesterday” não foi escrita em Londres, nem em Liverpool, mas dentro de um carro alugado, cruzando estradas acidentadas no sul de Portugal, durante uma viagem de férias com a então namorada, Jane Asher.
Era maio de 1965. O casal voou até Lisboa e, de lá, seguiu de carro até Albufeira, no Algarve, onde ficariam hospedados na casa do guitarrista Bruce Welch (da banda The Shadows). Sem estrada direta e com o aeroporto de Faro ainda inexistente, a viagem era longa. Foi ao passar pelo rio Mira, no caminho, que Paul escreveu a letra definitiva. Como ele mesmo disse: “Sempre odiei perder tempo, então usei o trajeto para trabalhar na música.”
Ao chegar em Albufeira, pediu um violão com urgência. Bruce emprestou-lhe um Martin 0018 de 1959. Paul, canhoto, dedilhou a melodia com a nova letra pela primeira vez. E ali, sob o sol português, nasceu oficialmente uma das maiores músicas do século XX.
A gravação que quebrou padrões
Corte para junho de 1965. Abbey Road Studios, Londres. Os Beatles estão no estúdio 2 — sim, o mesmo onde gravaram Sgt. Pepper’s dois anos depois. Mas aqui, algo diferente acontece: Paul grava “Yesterday” completamente sozinho, com voz e violão. Nada de Lennon. Nada de Ringo. Nada de George. Apenas Paul e uma ideia.
Dias depois, foi adicionado um quarteto de cordas, ideia do produtor George Martin. Na época, essa era uma jogada ousada: cordas num disco de rock? Heresia para alguns puristas. Revolução para outros. O resultado, claro, foi mágico. O arranjo minimalista deu ainda mais peso emocional à voz de Paul, permitindo que a melodia respirasse entre os espaços dos arcos.
Curiosamente, os músicos do quarteto só foram creditados publicamente 23 anos depois. Foram eles: Tony Gilbert (violino), Sidney Sax (violino), Kenneth Essex (viola) e Francisco Gabarro (violoncelo).
E como cereja do bolo, a faixa foi gravada no mesmo dia que “I’m Down”, uma das músicas mais agressivas da banda, também cantada por McCartney. Isso mostra, sem sombra de dúvida, o quão versátil ele era como vocalista e compositor.
O impacto cultural de “Yesterday”
Desde seu lançamento, “Yesterday” transcendeu o mundo pop. Virou trilha sonora de casamentos, filmes, comerciais e até funerais. É uma música que se adapta ao humor de quem a ouve. E mais importante: ela sobreviveu às décadas, algo que poucas canções conseguem fazer.
E claro, virou uma obsessão de intérpretes: de Ray Charles a Frank Sinatra, de Boyz II Men a Plácido Domingo — todos se renderam à simplicidade devastadora de “Yesterday”.
Mas talvez o maior feito da canção seja a forma como ela nos faz sentir. A letra é sobre perda, arrependimento, fragilidade. Mas a melodia é doce, quase esperançosa. É como se dissesse: “Sim, ontem foi ruim. Mas ainda estamos aqui.”