Disputas judiciais entre ex-integrantes da Legião Urbana e o herdeiro de Renato Russo geram reflexões sobre o legado e direitos da banda.
Poucas bandas na história do rock brasileiro têm o impacto cultural e a longevidade da Legião Urbana. Mais de duas décadas após o fim oficial do grupo, sua influência ainda ressoa fortemente entre fãs e músicos.
No entanto, essa força duradoura vem acompanhada de uma prolongada e complexa batalha judicial que opõe os membros sobreviventes da banda — o guitarrista Dado Villa-Lobos e o baterista Marcelo Bonfá — ao filho e herdeiro de Renato Russo,
Giuliano Manfredini. Em uma trajetória tão marcada por emoções intensas e sucessos atemporais, a disputa pela marca e os direitos de uso do nome Legião Urbana se tornou quase tão emblemática quanto o próprio legado musical do grupo.
A história remonta à formação da Legião Urbana, que, durante os anos 80 e 90, consolidou-se como uma das bandas mais representativas do rock brasileiro, trazendo letras que tratavam desde temas existenciais até questões políticas e sociais.
Porém, após o falecimento de Renato Russo em 1996, o futuro da marca Legião Urbana se viu atrelado a questões de propriedade intelectual e ao controle de uma marca cujo valor simbólico transcende gerações.
A Longa Disputa Judicial
Em 2015, Villa-Lobos e Bonfá decidiram resgatar a obra da banda e realizar uma turnê comemorativa para marcar os 30 anos do álbum de estreia da Legião Urbana. Nesse momento, a iniciativa foi autorizada judicialmente, permitindo que eles usassem o nome do grupo para promover o evento. Contudo, Giuliano Manfredini, herdeiro de Renato Russo, viu nessa movimentação uma violação de direitos e iniciou um processo para assegurar o controle exclusivo da marca.
Em entrevista ao programa “Conversa com Bial”, Villa-Lobos compartilhou sua frustração: “Costumo dizer que a banda durou 13 anos e está em juízo há 26.” Essa fala resume o quanto a situação se tornou desgastante para os músicos. Para eles, as turnês não representam apenas um meio de geração de receita, mas um esforço de honrar o legado da Legião Urbana e celebrar o repertório que definiram suas próprias vidas e de milhões de brasileiros.
O Peso do Legado e as Mudanças na Estrutura Jurídica
Originalmente, cada membro da Legião Urbana possuía uma empresa individual, da qual os outros integrantes eram sócios minoritários. Isso foi feito para proteger os direitos financeiros e criativos de cada um. No entanto, devido a necessidades burocráticas, a marca Legião Urbana acabou sendo registrada sob uma única entidade, a Legião Urbana Produções Artísticas Ltda., empresa de Renato Russo, que, após seu falecimento, passou para seu herdeiro, Manfredini.
Esse detalhe técnico se tornaria o ponto central dos conflitos futuros. Com a marca registrada exclusivamente na empresa de Russo, os direitos passaram a ser administrados legalmente pelo filho, que, ao contrário de Villa-Lobos e Bonfá, nunca esteve diretamente envolvido com a criação e execução da música da Legião. No entanto, é ele quem possui a última palavra sobre o uso do nome da banda, uma situação que, para os ex-integrantes, dificulta o acesso ao próprio legado.
Decisões Legais e Reviravoltas
Os desdobramentos jurídicos desse embate revelam uma batalha incansável e cheia de reviravoltas. Em um primeiro momento, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu a favor de Manfredini, impondo a Villa-Lobos e Bonfá a obrigação de repassar um terço dos lucros da turnê de 2015-2016 ao herdeiro de Russo. Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) revogou essa decisão em 2021, reconhecendo o direito dos músicos de usar a marca, alegando que a “Legião Urbana” é um patrimônio imaterial que, sem Villa-Lobos e Bonfá, jamais teria existido.
Apesar dessa vitória parcial, a batalha judicial continuou, com o caso retornando ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Em 2022, um novo julgamento reiterou a decisão original em favor de Manfredini, mantendo a necessidade de compartilhamento dos lucros da turnê e o controle exclusivo do nome.
Atualmente, a dupla segue em turnê sob o nome “As V Estações”, em que celebram os discos *As Quatro Estações* e *V*. Essa decisão é uma alternativa para contornar as limitações impostas pelo processo, mas ainda não resolve o desejo dos músicos de fazer uma referência mais direta à Legião Urbana. A ausência do nome icônico nos shows é uma ferida aberta, como aponta Villa-Lobos, que afirma que o nome “Legião Urbana” representa não apenas uma marca, mas um legado de amizade, criação e vida compartilhada.
A Perspectiva de Futuro: Legado ou Restrição?
Para muitos fãs, a batalha judicial entre Manfredini e os músicos parece refletir um abismo entre o significado afetivo da banda e as formalidades do direito empresarial. A Legião Urbana não é apenas uma entidade jurídica ou uma marca de propriedade privada; ela é, para muitos, um símbolo de um tempo, uma voz de gerações, e uma expressão artística que pertence ao coletivo. Em um momento onde o valor emocional se choca com as estruturas formais da lei, o caso da Legião Urbana representa um ponto de reflexão sobre até que ponto é possível delimitar, em termos jurídicos, o que representa o legado de um grupo culturalmente significativo.
Enquanto isso, Villa-Lobos e Bonfá seguem se apresentando, mantendo viva a chama do que foi a Legião Urbana e revivendo canções que são, para eles, tão pessoais quanto universais. Com cada performance, eles reafirmam a importância da música e do legado da Legião, mesmo que o nome tenha que ser omitido no material de divulgação. Em última análise, a disputa não diminui a potência das músicas da banda, mas, sem dúvida, impõe limites ao que o legado poderia representar sob outra gestão.
Em um contexto onde a indústria da música brasileira enfrenta um desafio de renovação, a história da Legião Urbana serve como um estudo de caso importante sobre os impactos de direitos autorais e propriedade intelectual no legado de grandes nomes da cultura. E como diz a própria Legião Urbana em uma de suas canções, “Será só imaginação?”, essa disputa deixa no ar a pergunta sobre como poderíamos honrar o passado sem esbarrar em tantas burocracias.