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O Corta Jaca a emancipação da Música

Vamos falar sobre o Corta-jaca, analisar como essa peça saiu do ambiente das classes populares para adentrar nos salões dos palácios presidenciais.

Neste artigo, exploraremos a rica história da música “Corta-Jaca”, composta pela genial Chiquinha Gonzaga. Esta canção não só se tornou um marco na música popular brasileira, como também desempenhou um papel crucial na emancipação do gênero. Vamos analisar como essa obra, inicialmente associada às camadas populares, conseguiu atravessar as barreiras sociais e culturais, até chegar aos salões do poder, incluindo o Palácio do Catete, simbolizando a alforria da música popular brasileira.

Corta Jaca, uma peça escrita para o teatro burlesco.

A princípio, essa obra foi composta para fazer parte da opereta do burlesco Zizinha Maxixe.  Sendo que sua letra foi escrita por José Machado Pinheiro e Costa. Sabe-se que a letra original ainda se encontra no libreto da peça.

Infelizmente, a peça não fez muito sucesso e ficou poucos dias em cartaz. Por outro lado, a música caiu no gosto popular. 

Na época, ainda eram raros os fonógrafos, e nem havia ainda um serviço de radiodifusão oficial no Brasil. Portanto, o meio mais popular de propagação de uma música, era que ela fosse cantada em rodas de amigos, saraus e festas.

Desta forma, vem a importância da letra para o sucesso da música. Era essa, imprescindível para que a melodia se fixe na memória dos ouvintes.  

A Primeira Gravação Fonográfica do Corta Jaca.

Foi no ano de 1902, que a peça musical recebe sua primeira gravação fonográfica. Por esse motivo, a composição ganhou uma nova letra, escrita  por José Machado Pinheiro e Costa. Foi esta foi gravada em disco por Pepa Delgado e Mário Pinheiro nos estúdios da Casa Edison.

Nesse ponto, o ouvinte deve estar se perguntando: Se não haviam meios eletrônicos de reprodução da obra, como os autores sobreviviam?

Simples, eles vendiam as partituras. Muitas vezes tinham de bater de porta em porta. Como por exemplo, era o caso de Chiquinha Gonzaga

Todo compositor tinha realmente de conhecer música.

O lado bom disso, é que exigia que os compositores tivessem conhecimento de escrita musical. Em muitos casos até conhecimento de regência. Muito diferente de hoje em dia, onde qualquer um pode ser compositor.

Voltando ao “Corta-jaca”, ele é utilizado na peça teatral Cá e Lá, musicada por Chiquinha Gonzaga. Essa peça possuía o libreto de Bandeira de Gouvêa e Tito Martins. Embora desta vez publicada com o título de “Coplas da jaca”. Para melhorar, a composição ganha também uma nova letra dos libretistas, mais recatada.

A partir de então, o “Corta-jaca” ganhou várias regravações até os dias atuais. Como é no caso do Filme Policarpo Quaresma, herói do Brasil, onde é utilizado como tema de abertura.

O ritmo em si trata-se de um maxixe, mais o que é um maxixe? 

Com certeza o “Corta-jaca” trata-se de um maxixe. Em outras palavras, o maxixe é uma espécie de tango, apreciado pelas camadas populares. Principalmente  dos subúrbios do Rio de Janeiro no final do século 19. 

Provavelmente, para não causar escândalo, nas partituras o “Corta-jaca” era vendido como tango. Vale ressaltar,  que é desse ponto de onde vem uma das polêmicas do nosso artigo.

O Corta Jaca no Palácio do Catete.

De onde vem a polêmica? Vem do fato que surpreendentemente, no dia 26 de outubro de 1914, Donna Nair de Tefé, executou nos salões do Palácio do Catete, o “Corta-jaca”.

Para espanto de todos, tocado ao violão, o maxixe foi ouvido em uma recepção promovida pelo marido de Dona Nair de Tefé, o Marechal Hermes da Fonseca, Na época, então presidente da república. Era essa, uma recepção dada a membros do corpo diplomático da época e a elite carioca em geral.

Inovadoramente, pela primeira vez, uma peça de música popular é executada nos salões da classe alta. Dos quais, onde só havia espaço para a música erudita e de preferência europeia. 

Então, A Emancipação da Música Popular.

O motivo disso, segundo a própria protagonista, a mesma tinha ouvido do poeta Catulo da Paixão Cearense, que nas festas palacianas não se executava a música nacional. Para Ilustrar Catulo da Paixão Cearense, era amigo pessoal do Marechal. Intrigada com a situação, Dona Nair de Tefé resolveu consultar seu professor de violão, Emilio Pereira. Esse, portanto,  lhe sugeriu que tocasse o “Corta-jaca” de Chiquinha Gonzaga.

Seu professor, Emílio Pereira, residia em Petrópolis, e vinha ao Rio de Janeiro para dar aulas de violão a Dona Nair de Tefé. Falando de Dona Nair, essa era , uma mulher muito à frente de seu tempo. Por sua vez, estava sempre interessada nas novidades e novas tendências. Com certeza, fazia jus ao título de primeira dama da nação.

Desse modo, aprendeu a tocar a peça com seu professor, a executou no salão nobre do palácio. Em contrapartida, não cantou a letra, para não escandalizar seus convidados. 

Por isso a execução dessa peça é considerada a alforria ou emancipação da música popular brasileira.

Um Momento que se eterniza na história.

Então, nesse momento, a música popularesca de Chiquinha Gonzaga ganha a sua merecida fama. Essa foi, alavancada pelo gesto generoso de Dona Nair de Tefé.

Esta versão da história,  foi apresentada pela própria Nair de Tefé em entrevista realizada em 1977. Relato gravado em fita que pertence ao Departamento de Filmes Culturais da Embrafilme. 

Milagrosamente, o caderno de violão, com o “Corta-Jaca”, copiado por Emilio Pereira, se mantém intacto. O referido caderno pertence hoje ao arquivo pessoal de Mozart Araújo, Rio de Janeiro. 

Para agravar a polêmica, o país estava às vésperas da transmissão do cargo de presidente. O que gerou outro incidente com um certo senador.

O raivoso discurso de Rui Barbosa.

Constantemente, o senador Rui Barbosa, ferrenho opositor do presidente, não perdia a chance de proferir críticas aos atos de seu opositor. Fazia isso porque foi derrotado por Hermes da Fonseca na eleição presidencial.

Para a sorte, dele claro, soube a execução de uma música popular nos salões do palácio. Consequentemente, proferiu um discurso inflamado, que vamos transcrever na íntegra:

“Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro. Aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. 

Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. 

Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner. E não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!”

Dá um tempo Rui Barbosa, Ninguém te Levou a Sério.

Por incrível que pareça, esse discurso foi publicado no diário do Congresso Nacional, em 8 de novembro de 1914. Por sua vez,  foi proferida na 147ª sessão do Senado Federal, em 7 de novembro de 1914. Pelo jeito, em 1914 os políticos também perdiam tempo com picuinhas.

Apesar de, ser um grande intelectual, Rui Barbosa tinha algumas posturas equivocadas. Uma delas, é ser contra a vacinação obrigatória. Outra é tratar a música popular como subproduto cultural. Ainda bem que ninguém o levou a sério.

Agora eu fico imaginando, e se Rui Barbosa vivesse nos dias atuais?  Imagine se o mesmo visse o presidente da república almoçando com cantores sertanejos? O que não diria?

Apesar Disso Outras Obras Clássicas Foram Executadas.

No entanto, o que ninguém comenta, é que, logo depois de tocar o Corta-Jaca ao violão, Nair de Tefé executou uma Rapsódia de Liszt. Independente de ter executado qualquer uma das 19 Rapsódias Húngaras ou mesmo até mesmo a Rapsódia Espanhola, isto sugere que a primeira dama tinha uma grande capacidade técnica.  

Mesmo que tenha sido executada em um arranjo facilitado. Também é digno de nota que, neste mesmo sarau, o pianista Arthur Napoleão interpretou seu improviso-scherzo “Les étincelles”. Na sequência, o pianista Leopoldo Duque-Estrada interpretou a Grande fantasia triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro, de Gottschalk. Ou seja, um momento histórico também para o piano brasileiro!

Provavelmente isto tudo foi executado no Piano Erard, de 1910, que se encontra no museu até hoje.

Dos Salões do Palácio, para entrar para a história.

Ao meu ver, Dona Nair de Tefé, com um simples gesto, prestou um grande serviço à evolução da música popular brasileira. Essa valorosa jovem, quebrou a barreira do preconceito social, revelou a cultura brasileira em segundo plano. Acabou emancipando e alforriando a cultura nacional. Diga-se, com atraso, mais ainda em tempo de fazer justiça.

São essas atitudes ousadas vão dar espaço para manifestações mais sólidas. Tal como a invenção do samba e sua consolidação no cenário nacional.

Ao meu ver, nomes como Chiquinha Gonzaga e Catulo da Paixão Cearense, nunca deveriam ser esquecidos. Deveriam ser lembrados pelas novas gerações. Porque devemos a eles muito do que temos hoje.

Um Legado Musical

O impacto de “Corta-Jaca” e de compositores como Chiquinha Gonzaga e Catulo da Paixão Cearense não pode ser subestimado. Suas contribuições foram fundamentais para a construção da música popular brasileira, e sua influência continua a ser sentida até hoje. É essencial que novas gerações conheçam e valorizem esse legado, que ajudou a moldar a cultura musical do Brasil. A história de “Corta-Jaca” não é apenas a história de uma música, mas a história de um movimento cultural que desafiou convenções e ajudou a redefinir o que significa ser brasileiro.

Se preferir ouça um podcast sobre o assunto:

 

 

 

 

 

1 comentário em “O Corta Jaca a emancipação da Música”

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