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O Eternauta: da ficção às feridas reais da Argentina

A adaptação da icônica HQ argentina O Eternauta finalmente chegou às telas. Lançada pela Netflix em 30 de abril de 2025, a série de seis episódios marca a primeira vez que essa poderosa história de ficção científica é dramatizada com todos os recursos de uma superprodução internacional. Estrelada por Ricardo Darín — um dos maiores nomes do cinema latino-americano — a série resgata uma narrativa que há muito tempo transcende os quadrinhos para se tornar um símbolo político e cultural da Argentina.

Mas O Eternauta é mais do que uma distopia bem construída. É uma obra profundamente conectada à história de seu criador, Héctor Germán Oesterheld, um dos nomes mais trágicos e emblemáticos da arte argentina do século XX. Sua ficção era profética. Sua vida, um reflexo brutal do terror real.

Uma nevasca, um sobrevivente, uma missão

Na série, Darín interpreta Juan Salvo, um homem comum de Buenos Aires que, após uma nevasca mortal composta por uma substância tóxica desconhecida, se torna o Eternauta: um viajante do tempo e do espaço. A trama acompanha sua trajetória desesperada para reencontrar a família, enquanto resiste a uma invasão alienígena que dizimou milhões.

A produção da Netflix impressiona pelo capricho visual. Os efeitos especiais são modernos, mas discretos, preservando o clima sombrio e paranoico que tornou a HQ original tão perturbadora. A Buenos Aires coberta por neve letal serve como metáfora poderosa para um país mergulhado no silêncio, na opressão e no medo.

O Eternauta não é apenas uma luta contra extraterrestres. É uma história sobre resistência, esperança e perda — temas universais que, no caso da Argentina, dialogam diretamente com um passado doloroso e ainda mal resolvido.

Héctor Oesterheld: quando a ficção antecipa o horror

Criado em 1957 por Héctor Germán Oesterheld e pelo ilustrador Francisco Solano López, El Eternauta foi publicado inicialmente na revista Hora Cero. À primeira vista, era “apenas” uma brilhante ficção científica. Mas Oesterheld, sempre crítico do imperialismo e das injustiças sociais, usou a obra como um espelho das tensões da Guerra Fria e das lutas de classes da América Latina.

Com o passar dos anos, especialmente durante a década de 1970, sua postura política se radicalizou. Oesterheld se juntou ao grupo Montoneros, uma organização de esquerda armada que resistia à ditadura militar argentina. Com ele, foram suas quatro filhas — todas jovens, todas engajadas, todas trágicas.

Em 1977, a repressão os alcançou. Oesterheld, suas filhas e seus genros foram sequestrados pelos militares. Estima-se que ele tenha sido assassinado em 1979, depois de passar por diversos centros clandestinos de detenção. As filhas — Diana, Marina, Beatriz e Estela — também foram mortas. Apenas sua esposa, Elsa Sánchez, e dois netos sobreviveram.

O destino de dois outros netos ou netas, nascidos no cativeiro, permanece desconhecido até hoje.

A vida imita a arte (e vice-versa)

Na HQ original, Juan Salvo sobrevive a uma Buenos Aires desolada e inicia uma busca incansável pela família desaparecida. Em um dos paralelos mais dolorosos da cultura argentina, milhares de pessoas viveram — e ainda vivem — esse mesmo luto.

O país sofreu uma das ditaduras mais brutais da América Latina. Estima-se que 30 mil pessoas tenham desaparecido entre 1976 e 1983. Muitas mães, pais, irmãos e avós continuam procurando seus entes queridos até hoje.

Entre essas organizações de busca está a Abuelas de Plaza de Mayo (Avós da Praça de Maio), que há quase meio século tenta localizar quase 500 bebês roubados por militares e entregues a famílias ligadas ao regime. Esses bebês cresceram sob identidades falsas — e muitos ainda não sabem quem são de verdade.

Com o sucesso da série O Eternauta, as buscas por descendentes de Oesterheld foram reativadas. Segundo o jornal El País, Diana Oesterheld estava grávida de seis meses ao ser sequestrada. Marina, sua irmã, também estava prestes a dar à luz. É possível que ambos os bebês tenham sobrevivido, mas seus paradeiros seguem incertos.

O Eternauta como símbolo político

A figura de Juan Salvo deixou os quadrinhos há muito tempo. Hoje, o personagem aparece em murais, grafites e cartazes espalhados por toda Buenos Aires. Ele não representa apenas um herói da ficção científica — é um ícone de resistência, de memória e de justiça.

Durante os anos 2000, a imagem do Eternauta foi resgatada por movimentos sociais e partidos de esquerda. Tornou-se símbolo de luta contra a impunidade e contra o esquecimento. Em muitas manifestações populares, seu rosto aparece ao lado de bandeiras exigindo justiça pelos crimes da ditadura.

Não por acaso, a adaptação da Netflix trouxe reações emocionadas. Para muitos argentinos, ver essa história contada com respeito, profundidade e apuro técnico foi como dar voz a gerações inteiras silenciadas pelo medo e pelo autoritarismo.

A importância de lembrar

A ficção científica sempre teve a capacidade de refletir medos reais. Desde 1984 até O Conto da Aia, passando por Fahrenheit 451, autores do gênero usam futuros distópicos para falar sobre o presente. Oesterheld fez o mesmo. E o fez com coragem suficiente para pagar com a própria vida.

Hoje, O Eternauta é mais do que um quadrinho. É um memorial vivo. Um alerta sobre como regimes autoritários destroem famílias, calcam a verdade e se alimentam da ignorância.

A série da Netflix, ao reviver essa história, não apenas presta homenagem a um clássico da nona arte, mas também cumpre uma função histórica: reacender debates, provocar reflexões e, quem sabe, ajudar na reconstrução de identidades perdidas.

Se você assistir à série e sentir que há algo estranho em sua história pessoal, ou conhecer alguém nascido entre novembro de 1976 e janeiro de 1978 na Argentina, a organização Abuelas de Plaza de Mayo pede que entre em contato. A busca continua.

Afinal, como nos ensina o Eternauta, a luta pela verdade nunca termina.