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Quando a Turma da Mônica brincou de Roque Santeiro

Em 24 de junho de 1985, a TV brasileira viveu um de seus momentos mais emblemáticos com a estreia da novela Roque Santeiro, escrita por Dias Gomes e Aguinaldo Silva. Produzida pela Rede Globo, a obra simboliza a redemocratização do país, refletindo a nova atmosfera de liberdade que começava a despontar após o fim da ditadura militar. Não por acaso, a trama foi ao ar uma década após ter sido censurada pela própria ditadura, quando sua versão original — inspirada na peça O Berço do Heroi — foi impedida de estrear, mesmo com os cenários já montados e o elenco escalado.

Dez anos depois, finalmente liberada, a novela não apenas foi ao ar, como explodiu em audiência e impacto cultural. Roque Santeiro não foi só um sucesso de ibope; ela se tornou um retrato satírico do Brasil da época, trazendo à tona debates sobre política, religião, moralidade e a fabricação de mitos nacionais. O país inteiro parava para assistir.

Esse fenômeno cultural foi tão potente que acabou atravessando as fronteiras da dramaturgia e chegando ao mundo das histórias em quadrinhos. E é aí que entra a Turma da Mônica.

A incursão inesperada: Mônica e Cebolinha entram em cena

Em 20 de agosto de 1985, os leitores da Folha de S.Paulo encontraram algo inusitado na tira diária da série Cebolinha: Mônica comentava com naturalidade o desempenho de Regina Duarte no papel da viúva Porcina. A frase — “A Regina Porcina não está no final da novela das oito?” — dava início a uma sequência inédita de tiras inspiradas diretamente em Roque Santeiro.

Era o começo de uma longa e criativa paródia em que os personagens de Mauricio de Sousa se envolviam numa brincadeira quase metalinguística: ao invés de simplesmente representar os papeis da novela como em outras adaptações já feitas pela turminha (como Romeu e Julieta ou Star Wars), os personagens permaneciam “no mundo real” — ou melhor, em seu bairro habitual — e decidiram brincar de novela, sem caracterização elaborada, mas com muita imaginação.

Assim, Mônica se tornava Porcina (ou Porfina, como o gibi a rebatizado mais tarde), Cebolinha assumia o papel do mandão Sinhozinho Malta (Sinhozinho Balta) e Cascão interpretava Roque (Sambeiro). Até o caipira Chico Bento dava o ar da graça, vestindo o papel de Zé das Medalhas. Era como se as crianças simplesmente tivessem assistido à novela na noite anterior e, na manhã seguinte, decidiram improvisar uma encenação no quintal.

Uma homenagem com crítica embutida

A escolha por não fantasiar os personagens de forma elaborada é significativa. Ela reforça a sensação de que se tratava de um jogo infantil baseado em algo do mundo adulto. Essa decisão estética e narrativa confere autenticidade à série de tiras e ao mesmo tempo aproxima os leitores da realidade da época.

E mais: a inserção de Roque Santeiro no universo da Turma da Mônica expõe a penetração da telenovela no cotidiano brasileiro. Mesmo sendo uma trama com temas complexos — corrupção, adultério, religião, sexualidade — ela se tornou onipresente. A própria Mônica, em uma das tiras, chega a refletir com Cebolinha: “Você não acha que a novela foi ficando muito pesada para nós? Muita coisa violenta… Muita coisa triste…”.

Esse comentário não é apenas um artifício de roteiro; é também uma crítica velada à forma como produtos culturais de massa impactam crianças, mesmo quando não são dirigidos a elas.

Um retrato do Brasil em transição

A série de tiras não apenas parodiava a novela, mas também inseria críticas sociais de maneira sutil. Em plena redemocratização, com a campanha eleitoral gratuita retornando às TVs e a primeira eleição direta para prefeitos se aproximando, a Turma da Mônica também se via às voltas com esses temas. Em determinado momento, os personagens questionam: “A novela de Asa Branca continua?” — referindo-se à cidade fictícia da trama. Cebolinha responde com sarcasmo: “Asa Blanca, não. Mas nós, sim”.

A metáfora é clara: enquanto a ficção acabaria, o “roteiro” do país continuaria sendo escrito, agora com participação popular.

Além disso, a concorrência televisiva também era refletida nas tiras. Quando a minissérie Pássaros Feridos, do SBT, ameaçou a audiência da Globo, a novela reagiu com capítulos mais longos. Esse movimento, amplamente discutido na mídia, acabou sendo citado nas tiras da Turma, com Cebolinha até convocando leitores a enviarem sugestões para o roteiro da novela fictícia.

O desfecho e a edição especial em formato de gibi

Em outubro, a Folha de S.Paulo parou de publicar a sequência das tiras, mesmo enquanto o Jornal do Brasil seguia firme. A série acabaria oficialmente em 9 de novembro, com Mônica anunciando: “Vamos parar de brincar de novela. De falar de novela. Tá na hora da gente procurar uma escola. Começar a estudar!”. Era um final simbólico, propondo uma virada de página, alinhada ao espírito de transformação vivido pelo Brasil naquela época.

Entretanto, a história não terminaria ali. Em janeiro de 1986, chegava às bancas o especial As Melhores Piadas do Roque Sambeiro, uma compilação das tiras publicadas nos jornais, com a adição de 13 inéditas. O lançamento não era por acaso: ainda pegava a reta final da exibição de Roque Santeiro, que se encerraria no mês seguinte, em fevereiro.

Essa edição foi a sétima da coleção As Melhores Piadas, que até então era focada em personagens individuais. Roque Sambeiro foi a única a quebrar esse padrão, sendo centrada em uma paródia específica. Curiosamente, isso não impediu que a série prosseguisse até o número 18, quando a linha foi absorvida pela Editora Globo, onde ressurgiu como As Grandes Piadas.

Por que esse material nunca foi republicado?

Apesar de seu valor histórico e criativo, Roque Sambeiro jamais foi reeditado. O principal motivo parece ser o alto grau de contextualização. As tiras são datadas, fortemente ligadas ao cenário de 1985, e dependem do conhecimento prévio da novela para funcionarem plenamente.

Além disso, questões de direitos autorais possivelmente impediram a republicação ampla: no gibi, os nomes foram alterados (Roque virou Sambeiro, Porcina virou Porfina), o que indica uma cautela editorial nesse sentido.

Hoje, esse material é um item raro entre colecionadores e pesquisadores. As tiras podem ser encontradas nos arquivos digitais da Folha (para assinantes) e do Jornal do Brasil (na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional). Já o gibi Roque Sambeiro se tornou uma preciosidade disputada em sebos e feiras de quadrinhos.

Um encontro improvável, mas memorável

No fim das contas, a paródia da Turma da Mônica a Roque Santeiro foi mais do que uma simples homenagem. Foi uma crônica social em forma de quadrinhos, um retrato da infância brasileira em diálogo com a cultura de massa, e uma amostra da flexibilidade narrativa que Mauricio de Sousa sempre cultivou em sua obra.

É um daqueles encontros raros em que dois fenômenos da cultura brasileira — um das bancas, outro das telas — se cruzam de maneira tão espontânea quanto significativa. E, como sempre, é no detalhe que mora a genialidade.