Em 1973, no efervescente cenário musical do Brasil, um evento aparentemente simples se transformaria em um marco histórico para a música nacional. João Ricardo, o visionário criador dos Secos e Molhados, encontrava-se no Rio de Janeiro, hospedado na casa do cineasta e escritor Paulinho Mendonça. A estadia surgiu como parte de uma colaboração com Ney Matogrosso, que estava na cidade para gravar a trilha sonora de um filme dirigido por Mendonça. Durante esse período, João Ricardo, sozinho em meio ao cotidiano carioca, teve um momento de inspiração que daria origem a um dos maiores sucessos da banda.
Enquanto Nei se dedicava à gravação, João Ricardo pegou seu violão e, imerso na atmosfera criativa da casa de Paulinho, começou a experimentar uma melodia que rapidamente o encantou. Contudo, a letra não surgia de imediato. Temendo perder a melodia, João decidiu procurar uma solução. A sorte estava ao seu lado quando encontrou um poema escrito por Paulinho Mendonça. O poema, que mais tarde se tornaria a letra de “Sangue Latino,” ofereceu a base para a canção, que, a partir desse momento, começaria a moldar a identidade dos Secos e Molhados.
É fascinante notar que, embora o repertório do primeiro disco dos Secos e Molhados estivesse sendo ensaiado há algum tempo e já estivesse praticamente fechado, “Sangue Latino” surgiria como uma das últimas adições de maneira completamente inesperada. Pouco depois, a canção se tornaria um dos primeiros grandes sucessos do grupo, solidificando a importância de João Ricardo e sua equipe na cena musical brasileira.
Para entender a magnitude de “Sangue Latino,” é essencial explorar o contexto em que a canção foi criada. Em 1973, o Brasil vivia sob o regime militar, e a América Latina enfrentava turbulências políticas e sociais significativas. A criação da música estava profundamente enraizada na conjuntura política da época, refletindo um sentimento de resistência e anseio por mudança que permeia a região.
O grupo Secos e Molhados, que emergiu como um projeto idealizado por João Ricardo, tinha como objetivo combinar melodias simples com uma mistura de rock e outros ritmos, além de letras que estimulam a reflexão crítica. A formação da banda começou a tomar forma em 1968, quando João Ricardo, então residente em São Paulo, conheceu Gerson Conrad. A ideia de montar uma banda foi discutida, mas só se concretizou anos depois, quando Gerson e João decidiram reviver o projeto.
A inclusão de Ney Matogrosso na formação da banda ocorreu por meio de uma recomendação de Luul, uma cantora que conhecia o potencial vocal de Nei. Nei, um hippie que vendia artesanato no Rio de Janeiro e cantava por diversão, se juntou a João e Gerson em São Paulo no início dos anos 70. Esse período de ensaios intensivos foi crucial para afiar a banda antes de procurar uma gravadora.
“Sangue Latino” surgiu durante os preparativos para o primeiro álbum da banda, que foi gravado ao longo de 1973. A canção teve sua gênese durante uma visita a Paulinho Mendonça, quando João Ricardo e Nei foram convidados para colaborar na trilha sonora de um curta-metragem intitulado “A Casa Tomada”. O filme, baseado em um conto de Julio Cortázar, um renomado escritor argentino, fez parte de um movimento literário latino-americano que ganhou notoriedade na transição dos anos 60 para os 70. Esse grupo de escritores, incluindo Mário Vargas Llosa e Gabriel García Márquez, estava unido por uma oposição comum aos golpes militares na América Latina.
É interessante observar que a influência desses escritores e o clima político da época também afetaram a criação de “Sangue Latino.” A canção, com sua letra evocativa e crítica, ecoa a resistência e o desejo de mudança que permeavam a sociedade latino-americana. A escolha do poema de Paulinho Mendonça para a letra foi um reflexo deste espírito.
O processo criativo de “Sangue Latino” teve um desenvolvimento inesperado. Durante a ausência de Paulinho, João Ricardo aproveitou o tempo para trabalhar na melodia que havia criado. Sem a tecnologia moderna para gravar ideias, João enfrentou o desafio de preservar a melodia. Ele optou por tocar incessantemente até fixar a melodia na memória e, ao mesmo tempo, procurou uma letra que se encaixasse.
O poema de Paulinho Mendonça, intitulado “Jurei Mentiras e Sigo Sozinho,” foi encontrado entre os papéis do cineasta. João imediatamente se encantou com a combinação da melodia e a letra, que falava diretamente ao espírito da época. Essa descoberta não apenas resultou em uma canção impactante, mas também marcou um momento significativo na colaboração entre João e Paulinho.
No entanto, a criação de “Sangue Latino” não foi isenta de desafios. Há uma discrepância nas versões contadas por João Ricardo e Paulinho Mendonça sobre o processo. João afirma que, ao mostrar a música para Paulinho, este último achou que a letra estava muito boa, mas originalmente foi escrita para Jorge Ouvar. Por outro lado, Paulinho relata que, ao se deparar com a versão preliminar da letra, decidiu escrever uma nova letra, mas acabou encontrando dificuldades para encaixá-la na melodia. A solução foi fazer ajustes até que a letra final se adequasse à música.
A gravação da canção envolveu uma colaboração notável. O baixista argentino Willy Verdaguer, que havia se mudado para o Brasil em 1967, desempenhou um papel crucial. Willy criou uma linha de baixo que se tornou uma parte distintiva da música. A contribuição de Willy, embora não creditada na época, foi fundamental para a construção da identidade sonora de “Sangue Latino.”
Além do baixo, a música incorporou elementos acústicos, como o violão de 12 cordas tocado por João Ricardo e o violão adicional de Gerson Conrad. Esses elementos deram à canção uma textura rica e diferenciada, inspirada em grupos como Crosby, Stills, Nash & Young, que influenciaram o som dos Secos e Molhados.
A gravação final da música ocorreu com a base instrumental completa, seguida pela gravação da voz de Nei Matogrosso. A escolha de realizar a gravação da voz em uma única tomada demonstra a confiança e a habilidade do grupo. No entanto, durante a mixagem, João Ricardo fez ajustes para melhorar o equilíbrio dos instrumentos e a inserção do violão, resultando em um fade-in para o violão na mixagem final.
A canção “Sangue Latino” foi escolhida para abrir o álbum homônimo dos Secos e Molhados, lançado em 1973. O sucesso do álbum foi inicialmente difícil de alcançar, com a banda enfrentando resistência das gravadoras. No entanto, a persistência de Moraci do Val, um jornalista que acreditou na banda, levou à assinatura com a Continental, possibilitando a gravação e lançamento do disco.
O impacto de “Sangue Latino” foi amplificado pelo clipe exibido no programa “Fantástico,” que foi crucial para a popularização da música. A escolha da música para o clipe foi uma combinação de sorte e circunstância, resultando em uma apresentação memorável que cativou o público brasileiro.
O sucesso da canção levou a uma carreira promissora para os Secos e Molhados, com “Sangue Latino” e outros sucessos como “O Vira” e “Rosa de Hiroshima” se destacando nas paradas musicais. A banda também explorou o mercado internacional, lançando versões em espanhol para suas músicas, incluindo “Sangre Latina.”
Em termos de letra, “Sangue Latino” aborda temas profundos relacionados à América Latina. A referência ao termo “Latino” está relacionada à herança cultural e histórica da região, que se estende desde a Península Itálica até a América Latina. A letra, muitas vezes associada ao livro de Eduardo Galeano, “As Veias Abertas da América Latina”, explora a opressão e a luta pela liberdade, refletindo o clima político da época.
Embora não haja confirmação direta de que a letra foi inspirada por Galeano, o sentimento de resistência e esperança é palpável. Paulinho Mendonça e João Ricardo, como parte da geração que buscava a libertação dos regimes autoritários, canalizaram essa visão em sua música, criando uma obra que ressoou profundamente com o público.
Assim, “Sangue Latino” não é apenas uma canção icônica dos Secos e Molhados, mas também um reflexo da época e das aspirações de uma geração que lutava por mudanças. O legado da música continua a inspirar e a ressoar, solidificando o papel dos Secos e Molhados como um dos grupos mais inovadores e significativos da história da música brasileira.