No artigo de hoje vamos tentar descobrir o significado da música “Metrô Linha 743”. Saber, na verdade, o que Raul Seixas queria dizer com essa música, pra lá de esquisita.
Com certeza “Metrô Linha 743”, não é a música mais popular de Raul Seixas. Também não é a música que possui a mensagem mais impactante.
Por outro lado, é a canção que contém a frase mais enigmática escrita por ele.
Por isso vamos falar sobre ela e tentar entender essa mensagem. Se é que isso é possível.
As letras de Raul Seixas, sempre trazem algum aspecto enigmático, por isso sempre dão margem às mais diversas interpretações e significados.
Como é o caso de “Metrô Linha 743”, uma composição exclusiva de Raul Seixas, lançada no álbum do mesmo nome, no ano de 1984.
O Contexto Histórico: Redemocratização e Repressão
Para compreender melhor essa canção, é essencial situá-la no contexto histórico em que foi composta. O Brasil, em 1984, vivia um período de transição política, com o regime militar, que governou o país com mão de ferro desde 1964, começando a dar sinais de esgotamento. Este era um momento de expectativas e incertezas, com a população ansiando pelo fim da repressão e pelo retorno da democracia plena.
No período em que essa canção foi escrita, no Brasil se iniciava um lento e complicado processo de redemocratização política.
Ainda perdurava no país o regime militar, mais de uma forma mais branda que as fases anteriores.
Por isso, tudo leva a crer, que Raul Seixas esteja falando de um fato que ocorreu, anteriormente, no ano de 1974.
Nesse tempo, o mesmo foi preso e torturado durante três dias, e depois foi enviado para o exílio nos Estados Unidos.
Acreditamos que esse momento político vivenciado por ele, tenha pensado muito na construção dessa música.
O Ano de 1984 e a Referência a George Orwell.
Coincidentemente, a canção foi lançada no ano de 1984, o mesmo ano previsto para a distopia autoritária de George Orwell.
No livro intitulado 1984, Orwell previu um mundo dominado por um líder altamente autoritário e manipulador, chamado de grande irmão.
Nesse mundo as pessoas têm suas vidas totalmente controladas pelo governo e não tem liberdade nem de pensar.
Claro que isso nunca aconteceu, mas ficou a expectativa. Atiçando a curiosidade de muita gente.
Me adiantando a análise da letra, quando Raul Seixas fala dos caçadores de cabeça. Ele pode estar se referindo a polícia do pensamento, citada no livro de Orwell.
Não sabemos se Raul Seixas estava lendo o livro ou se utilizou essa referência de forma proposital.
Mas a semelhança entre o enredo de 1984 e o que está contido na música é muito grande.
O mais certo é que Raul Seixas esteja fazendo uma crítica muito pesada ao moribundo, regime militar.
Por outro lado, ele poderia, analogamente, estar comparando a repressão e o controle imposto pelo regime militar, às cenas de controle e repreensão contidas na história do livro.
Dessa forma, isso faz muito sentido e tudo leva a crer que Raul Seixas utilizou sim o livro de Orwell como referência.
Ele sabia que estava sendo vigiado
Vale ressaltar que em nenhum momento, Raul Seixas faz referência direta ao regime militar ou ao livro 1984.
As conclusões aqui tiradas são tiradas por nossa conta, com base nas circunstâncias.
Dito isso, vamos à letra. No primeiro verso ele diz:
Ele ia andando pela rua meio apressado
Ele sabia que estava sendo vigiado
Nesse verso, ele nos apresenta um personagem, ele. Que sabia que estava sendo vigiado.
A primeira pessoa do discurso fala de uma segunda pessoa.
Ele anda apressado pela rua, como se estivesse fugindo de algo. Enquanto o personagem principal, o narrador, parecia estar alheio a toda a situação, até meio despreocupado.
Próximo verso:
Cheguei para ele e disse
Ei amigo, você pode me ceder um cigarro.
Ele disse
Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado
Dois homens fumando juntos
Pode ser muito arriscado
As Referências a Fase Mais Dura da Ditadura
Se você ler dez interpretações sobre essa música, todas as dez vão dizer que ela fala do regime militar.
Quando fala no verso “que dois homens fumando juntos, pode ser muito complicado”. Raul Seixas, deixa claro que vive em um regime de repressão, onde dois homens conversando parados na rua, pode ser considerado uma atitude suspeita.
Embora o personagem, que é o interlocutor da história, não parece preocupado com o fato, ou talvez não esteja ciente. O outro personagem, o ele, está em nível paranoico.
Onde o simples gesto de fumar juntos, lhe provoca pavor.
Os cérebros pensantes devem ser eliminados.
No verso seguinte, diz:
Disse o prato mais caro do melhor banquete
É o que se come cabeça de gente que pensa
E os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam
Porque quem pensa
Pensa melhor parado
Quem disse foi o ele, o personagem que parece estar por dentro da situação.
Ele explica que os caçadores de cabeça procuram as pessoas pelo o que elas pensam.
Consequentemente, quem está parado pensa mais, por não estar com a cabeça ocupada.
O fato de procurar cabeças pensantes para o banquete, nos remete a um estilo kafkiano, de narrativa. Uma narrativa surrealista e exagerada, mas isso é próprio do autor nessa fase.
O escritor que perdeu a pena
No próximo verso diz:
Desculpe minha pressa
Fingindo atrasado
Ele finge estar atrasado, dando a ideia de estar vivendo em um regime onde é preciso dissimular para evitar a perseguição.
No verso seguinte diz:
Trabalho em cartório mas sou escritor
Perdi minha pena nem sei qual foi o mês
Metrô linha 743
Ele diz que é escritor, mas não pode exercer sua profissão. Geralmente escritores são pessoas muito críticas e podem influenciar a população. Por isso tem de exercer uma profissão burocrática, que não ameace o sistema.
Tudo leva a crer, que nessa parte da canção, Raul Seixas, esteja falando do seu parceiro Paulo Coelho.
Pois Paulo Coelho era escritor, também foi perseguido e fugiu do país antes.
No texto também, Raul Seixas utiliza duas vezes a desorientação de tempo, quando diz nem sei qual foi o mês.
Talvez, não temos certeza, ele esteja fazendo referência às pessoas que ficaram por longos períodos sendo torturadas ou perseguidas pelo regime. A pressão psicológica faz com que os indivíduos percam a noção de tempo.
Três Misteriosos Agentes Aparecem
O próximo verso:
O homem apressado me deixou e saiu voando
Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando
O personagem apressado, já pressentindo que havia alguma coisa errada, sai rapidamente. Enquanto o outro inocente permanece no local sem perceber o perigo.
Sair voando, também pode ser uma referência a Paulo Coelho, que deixou o país de avião.
Três outros chegaram com pistolas na mão
Um gritou
Mão na cabeça malandro
Se não quiser levar chumbo quente nos cornos.
Eu disse
Claro, pois não
Mas o que é que eu fiz
Se é documento eu tenho aqui…
Três personagens misteriosos aparecem, nas referências dá a entender que são militares ou policiais. Primeiro, porque estão armados, segundo porque o narrador se oferece para mostrar os documentos, atitude típica de quem é abordado pela polícia.
Na época, o órgão que fazia o controle político era o DOPS.
Uma atitude violenta por parte do regime.
Segue o texto:
Outro disse
Não interessa, pouco importa, fique aí
Eu quero saber o que você estava pensando.
Fica claro que não estão perseguindo criminosos comuns, mas pessoas que possam representar algum tipo de ameaça ao sistema.
Eu avalio o preço me baseando no nível mental
Que você anda por aí usando
E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando
Quanto maior o nível mental, ou o senso crítico, mais cara a cabeça seria. Aqui o autor pode ter feito uma analogia, comparando o preço em dinheiro ao estrago que uma pessoa inteligente e com ideias adversas pode fazer ao regime pode causar.
Nesse caso, o caro é associado ao dano.
Minha cabeça caída, solta no chão
Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez
Nesse ponto o surrealismo da cena aumenta. O personagem é decapitado e sua cabeça fica consciente, olhando para o corpo jogado no chão.
Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha
Eu era agora um cérebro
Um cérebro vivo à vinagrete
Nesse ponto o cérebro ganha vida separado do corpo e se torna o personagem.
Meu cérebro logo pensou
Que seja, mas nunca fui tiete
Dizer que nunca foi tietê, talvez seja o fato de sempre ter andado à margem do regime. Nunca ter se submetido ou bajulador governantes autoritários.
Quando ele diz, Que seja, talvez diga, podem me calar, mas eu nunca vou concordar com isso.
Fui posto à mesa com mais dois
E eram três pratos raros, e foi o maitre que pôs
Se posto a mesa com mais dois, pode ser uma referência à crucificação de Cristo. Raul Seixas, utiliza muitas metáforas bíblicas em suas canções.
Na época Raul Seixas e Paulo Coelho eram influenciados pela doutrina de Aleister Crowley, como muitos outros astros do Rock.
Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado
Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado
Quem será este desgraçado dono desta zorra toda
Fica a pergunta, quem é o dono desta zorra. Raul Seixas, inteligentemente, joga a pergunta para seus fãs.
O recado póstumo do cérebro que foi devorado.
Segue o verso.
Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais
Mas o negócio é que dá muito bandeira
Dá bandeira demais meu Deus
Dar bandeira é uma gíria antiga, dos anos 60. Significa deixar-se ser percebido, como uma bandeira exposta na rua. No contexto da letra, ser negligente, e não perceber os perigos que se aproximam..
Cuidado Brothers
Cuidado sábio senhor
É um conselho sério pra vocês
Eu morri e nem sei mesmo
Qual foi aquele mês
Para finalizar, ele deixa o conselho. O regime estava chegando ao final, mas nada o impedirá de voltar um dia. Como um leviatã que dorme sob o tempo e pode ressurgir a qualquer momento.
Mais porque metrô linha 743?
Na época mais crítica do regime militar, a censura às notícias era muito dura. Muitas vezes era permitido aos jornais somente noticiar mensagens positivas. Eram mensagens que exaltavam a nação brasileira, como a construção e inauguração de obras.
Como por exemplo a inauguração da linha do metrô em São Paulo. Sendo que o metrô começou a funcionar no ano de 1974. Nesse ponto, o 74 pode ser uma referência ao ano de inauguração do metrô.
Quando Raul Seixas canta o refrão da música, em tom de ironia, altera o que realmente queria dizer, pela referência ao metrô.
Por outro lado, em 1974 Raul Seixas foi preso e enviado para o exílio. E durante 3 dias foi torturado. Tudo leva a crer que o número 743 pode ser uma referência cruzada a esse período de sua vida.
Raul Seixas, com sua visão profética e sua habilidade de transformar o ordinário em extraordinário, nos adverte sobre os ciclos de repressão que podem surgir a qualquer momento. O “leviatã” do autoritarismo pode estar adormecido, mas nunca está completamente morto.
“Metrô Linha 743” é mais do que uma simples canção. É um comentário sobre o poder, o controle, e a resistência. É uma obra que, ao mesmo tempo, reflete o contexto político da época e transcende-o, oferecendo uma mensagem universal sobre a luta pela liberdade de pensamento. Assim, ao interpretar essa música, não estamos apenas tentando entender o que Raul Seixas queria dizer, mas também refletindo sobre nossa própria relação com o poder e a liberdade.
Se preferir, ouça um podcast sobre o assunto:
Ouça a música no SpotFy
Entrevista em áudio onde Raul Seixas fala sobre sua prisão e exílio. Cuidado que o texto é bem chocante.
Assista um vídeo não oficial: